Polémica e controvérsia foram as
primeiras reações à atribuição do Prémio Nobel da Literatura de 2016. Ao que
parece, para muitos, os “novos modelos de expressão poética no quadro de
tradição da música americana” que a academia sueca alegou, não fazem de Bob
Dylan um ícone literário. Mantenho a discrição quanto a esse tópico, ainda sem
recusar o desafio de escrever sobre ele.
Dentro da obra do cantor e
compositor norte-americano podemos encontrar, para além da sua vasta
discografia, um menos vasto conjunto de livros por ele publicados - dos quais uma
autobiografia (Crónicas), e um livro
de poesia (Tarântula). Mas,
respeitando o motivo pelo qual o prémio foi atribuído, a obra que irei abordar
(ainda que mais num registo poético do que musical, afinal sempre se trata do
Nobel da Literatura) pertence ao primeiro conjunto: o álbum Highway 61 Revisited (1965). Trata-se do
álbum que veio pôr fim à crise criativa do autor, quando este ponderava
terminar a sua carreira. A construção começou com um rascunho do primeiro tema,
que Bob Dylan inicialmente classificou como “um longo pedaço de vómito”, mas
que acabou por restaurar o entusiasmo que parecia ter-lhe fugido.
A autoestrada 61 é conhecida nos E.U.A. como a “autoestrada do blues”, por atravessar vários estados
onde nasceram os seus maiores ícones, tomando início onde nasceu o próprio Bob
Dylan. Há quem aprecie o álbum pela “captura
do caos político e cultural dos Estados Unidos contemporâneos”. Não
menosprezando esse ponto de vista, eu prefiro olhar para a obra como um
interlúdio criativo do autor. Numa primeira abordagem, apercebemo-nos que este
é um álbum que se desvia um pouco do registo musical característico de Bob
Dylan. Esse desvio pode ser compreendido se olharmos para o álbum pela ordem em
que se encontra, tema a tema, como se fosse mesmo um livro de poemas ou a
própria autoestrada 61.
“Like a Rolling Stone” é o primeiro tema apresentado, e situa-se
portanto no início da viagem, no momento em que o sujeito poético sai de casa.
Despe-se de todo o conforto da estabilidade, e pergunta-nos, a nós ouvintes,
num tom quase acusativo, qual é a sensação de estar sozinho e desorientado. O
próprio é simultaneamente orador e auditório, lutando em frustração contra as
próprias reflexões.
Segue-se, com a mudança de ritmo, o
primeiro indício de turbulência da sua viagem, resultante do “conhecimento
inútil e sem sentido” que todos teimamos em adquirir - no entanto, a viagem
nunca chega a perder o equilíbrio pois o autor descobre a capacidade de se
abstrair da turbulência. Sente-se amparado e confiante de que a sua obra fará
tudo o que ele deixar por fazer.
Como o título indica, a sua viagem
é uma revisitação ao que diz ser “o seu lugar no universo”. E a conclusão que
tira dessa revisitação é que não é possível viver a vida ilusória da
autoestrada 61 sem se despegar da realidade. Denuncia aqueles que veem o mundo
a preto e branco, e sente-se, no meio deles, um marginal. No ponto em que
explicita que o motivo que o levou a revisitar o lugar foi o facto de estar
cansado de si mesmo e de todas as suas criações, percebemos que tudo na sua
vida aí reencontra o seu caminho, e que, portanto, é esse que segue quando não
consegue tirar nada do caminho anterior. Porém, é tempo de ressurreição existencial
e o autor continua a crer-se enganado por tudo o que o rodeia; o que faz com
que a esperança de atingir a escapatória que levava em mente, comece a chegar
ao fim (uma vez que o trajeto está também).
Termina com “Desolation Row”, regressando ao registo musical mais característico
de si, ao qual teria tentado fugir ao longo do álbum. É o término da jornada
espiritual, o apocalipse poético da obra, o fim do interlúdio criativo. Olha
para trás e vê o ridículo – observa que os que seguem o mesmo longo e
atribulado trajeto que ele terminou, “coitados”, não têm outro destino senão o
da desolação…
Em suma, trata-se de uma obra complexa
que, retratando um genuíno existencialismo artístico, fá-lo através da fusão
entre a música e a poesia. A eloquência da sua construção e a particularidade
da escrita de Bob Dylan tornam-na cativante e digna de uma interpretação
pessoal tanto da vertente musical como literária.
Mª Margarida Madeira, 12º E
0 comentários :
Enviar um comentário
Os comentários anónimos serão rejeitados.