Eis a II
Parte da Entrevista que Teresa Martins Marques (TMM), antiga
aluna do Liceu da Guarda, presidente do PEN Clube português e autora do romance
“A mulher que venceu Don Juan”, nos concedeu. A II Parte é focada na sua
carreira profissional e na sua produção escrita. TMM explica os contornos da
obra a apresentar na sexta-feira, 14 de fevereiro, e fala dos seus estudos à
volta de José Rodrigues Miguéis e David Mourão-Ferreira.
Como chegou à ficção e ao romance
que vem apresentar à Guarda?
Cheguei à
ficção naturalmente. No Colégio da Bonança tive uma professora de Português que
me chamava a “literata da turma,” porque lia tudo o que encontrava nas
Bibliotecas. Esta excelente Senhora Dona Maria Luiza Simões de Castro Ferreira
Leite, a quem dediquei um ensaio nas minhas Leituras Poliédricas (2002),
mandou-nos comprar, logo no 3º ano, um livrinho que conservo religiosamente - Breves
Noções de História da Literatura Portuguesa, da autoria de Renato
Figueiredo (Porto, Editorial Domingos Barreira). Recordo-me de lhe ter dito: Então
o que é isto? Só estão aqui duas mulheres? Eram a Marquesa de Alorna e a
Florbela Espanca. Passou-me uma ideia pela cabeça: e se um dia eu fosse
escritora? Passei a escrever contos em caderninhos, que não mostrava a
ninguém…Muitos desses contos da Juvenilia acabaram numa fogueira que o
meu irmão Joaquim fez no quintal, juntamente com as revistas francesas que eu
assinava. Tudo bem, por ter deitado fogo aos contos, com meninas a morrer de
desgosto de amor fechadas em colégios… Mas o que nunca lhe perdoei foi ter
feito arder o meu Paris Match de Maio de 68!
Comecei a
publicar contos apenas em 2008. A publicação de ensaios vem desde 1985. A Mulher que Venceu Don Juan foi a
primeira experiência, em Portugal, de um romance, cuja 1ª edição nasceu no
Facebook, ao longo de 28 sábados, entre 2012 e 2013. A interação
com os leitores foi permanente, não apenas para transmitir opinião, mas também
para dar sugestões de continuidade da história. Acrescentei-lhe três capítulos e
saiu pela Âncora Editora, em Dezembro de 2013. Baseou-se num caso real, que
alterei muito, porque os protagonistas estão vivos e é necessário preservar a
sua identidade.
Don Juan,
neste romance, é um conceito apresentado na teoria e na prática através de três
personagens - dois homens, Amaro e Manaças, bem como uma jovem mulher, Joana -,
mostrando que o colecionismo não tem género exclusivo. Procurei focar os
comportamentos donjuanescos do direito e do avesso, mostrando o poder da
sedução, as manhas e as estratégias de caça, mas também os aspetos que esse
avesso esconde, tais como narcisismo primário, mentira e dissimulação, recalcamento
homofóbico e ressabiamento social. Estes
três sedutores são dois homens - um histriónico e um psicopata –, mas também uma
mulher borderline. Todos eles muito
atraentes, encantadores por fora e negros por dentro, ao tirarem a máscara da
sedução. A protagonista - Sara Dornelas - é a típica vítima ingénua, casada aos
dezassete anos com um cirurgião plástico inteligente, elegante, vinte anos mais
velho, que atrai as mulheres primeiramente pela força da palavra, mas depois
pela agressão física, não hesitando perante o crime. De crime morrerá ele
também, às mãos da mais improvável das mulheres, que manipulou e abandonou, não
cumprindo os deveres de pai.
O foco
centralizador do romance é a recuperação das seduzidas, ao tomarem consciência
da sua condição de vítimas. Procurando ilustrar problemas atuais através de
personagens com um máximo de efeito de real, focam-se temas como a violência
doméstica exercida sobre as mulheres, mas também por mulheres sobre os homens e
sobre outras mulheres, em todas as classes sociais. Chamei a atenção para a
violência nas relações intrafamiliares, patenteadas quer como abandono, ciúme e
ansiedade da influência. Combati fortemente os preconceitos sobre a
homossexualidade, traduzidos pela homofobia. Procurei mostrar os bas-fonds da prostituição, do
proxenetismo, do tráfico de drogas, do crime organizado. No meio do pântano de
afetos negativos, procurei transmitir esperança através de algumas personagens
luminosas como a psicóloga Lúcia, mulher generosa que se desmultiplica em
solidariedade, como forma de sublimação de um passado muito infeliz, sem nunca
se vitimizar.
A vítima
Sara Dornelas salva-se através do estudo, deixando para trás o passado de
desocupada e deprimida, violentada pelo marido. Esta heroína terá como prémio a
dignidade da vida que foi capaz de reconstruir e a descoberta do amor. Um amor
verdadeiro de um homem que a incentivava a prosseguir, enquanto ele mesmo se
libertava não apenas do álcool, mas também da Dona Juana que o oprimia.
Este
romance faz parte do Plano Nacional de Leitura. Sobre ele foram escritas duas
dissertações: de licenciatura, na Universidade de Bucareste, por Gabriel
Alexandru Streinu (2014); de mestrado, por Ana Carolina Mendes Camilo: «Representações
Femininas em A Mulher Que Venceu Don Juan», UNESP, Brasil, Janeiro de
2019. Foi concluída e subsidiada pelo
Instituto Camões a tradução na Roménia, estando em curso a tradução na Hungria.
O cineasta Leonel Brito criou e administra um
blogue específico : http://amulherquevenceudonjuan.blogspot.com/
Em que áreas e sobre que autores
investigou ao longo da carreira universitária?
Na década de 90 fiz parte da equipa do Instituto de
Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa (1992 a 1995),
nomeadamente na vertente da terminologia literária. Estudei a obra de Vercors Le Silence de La Mer (1942) no meu primeiro livro
publicado, Si On Parle du Silence de La Mer (Editora Danúbio,1985).
Os autores portugueses
que mais trabalhei foram José Rodrigues Miguéis, sobre o qual escrevi a
dissertação de mestrado (O Imaginário de Lisboa na Ficção de José Rodrigues
Miguéis (Editorial Etampa,1994), e David Mourão-Ferreira, com a tese de doutoramento,
muito aumentada no livro Clave de Sol- Chave de Sombra. Memória e Inquietude
em David Mourão-Ferreira (Âncora Editora, 2016).
Dirigi a Edição das Obras
Completas de José Rodrigues Miguéis, no Círculo de Leitores (1994-1996), e
assinei cada uma das introduções dos 13 volumes da Obra migueisiana. Coordenei
a equipa de organização do Espólio Literário de David Mourão-Ferreira, na
Fundação Calouste Gulbenkian / Ministério da Educação (1997-2004). No meu livro
de ensaios Leituras Poliédricas (Universitária Editora, 2002) apresento
diversos estudos sobre Cesário Verde, Gomes Leal, Raul Brandão, Vitorino
Nemésio e sobre os contemporâneos Eugénio Lisboa, João de Melo, Onésimo
Teotónio de Almeida, entre outros.
Em 1989, foi atribuído o Prémio José Régio ao meu
ensaio «O Eu em Régio - A dicotomia de Logos e Eros», incluído atualmente em Leituras
Poliédricas. O jornal A Guarda noticiou este prémio, sem referir que a vencedora
era uma mulher guardense. Tive pena que o não tivesse referido.
Penso que
uma particularidade da minha escrita de ficção seja a confluência com o plano
do ensaio. Em A Mulher que Venceu Don Juan uma jovem doutoranda defende
uma tese sobre o Diário do Sedutor de Kierkegaard, duplicando no plano
teórico o que se passa no plano da ação do romance. O romance que tenho em
mãos, centrado no sequestro e assassínio de Aldo Moro, em Roma (1978), alia também
a investigação histórica à ficção propriamente dita.
Como
cidadã e como escritora, entendo que não podemos ter uma visão exterior do
tempo em que vivemos, muito menos uma posição acomodada do nosso papel. O tempo
em que vivemos depende do nosso empenhamento, determinação e ação. A literatura
não pode ser apenas mero exercício de linguagem. A literatura tem de ser uma
escrita de valor e de valores. Perguntaram um dia a David Mourão-Ferreira para
quem escrevia e respondeu: escrevo para as pessoas comuns, como forma de
diálogo com elas, para os inquietos, os inconformistas, para os que resistem e
não desistem de melhorar o tempo em que vivem. Para os que querem fazer a
diferença, conforme nos ensinou José Rodrigues Miguéis n’O Espelho
Poliédrico: “A
melhor maneira de ser igual aos outros não é ser como eles,
mas ser diferente: é sermos nós-mesmos até ao limite. O que torna os homens iguais é o direito a serem diversos.”
Neste tempo em que vivemos, os
agentes culturais, mantendo a sua identidade e diversidade, têm de juntar
esforços para a promoção da cultura. Conforme nos disse Albert Camus, “Sem a
cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais
perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação
autêntica é um dom para o futuro.”
Teresa Martins
Marques é presidente do PEN Clube Português. Investigadora
integrada no CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e
Europeias da Universidade de Lisboa).
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