quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA - II PARTE Teresa Martins Marques fala sobre a sua atividade de investigação e escrita


Eis a II Parte da Entrevista que Teresa Martins Marques (TMM), antiga aluna do Liceu da Guarda, presidente do PEN Clube português e autora do romance “A mulher que venceu Don Juan”, nos concedeu. A II Parte é focada na sua carreira profissional e na sua produção escrita. TMM explica os contornos da obra a apresentar na sexta-feira, 14 de fevereiro, e fala dos seus estudos à volta de José Rodrigues Miguéis e David Mourão-Ferreira.

Como chegou à ficção e ao romance que vem apresentar à Guarda?
Cheguei à ficção naturalmente. No Colégio da Bonança tive uma professora de Português que me chamava a “literata da turma,” porque lia tudo o que encontrava nas Bibliotecas. Esta excelente Senhora Dona Maria Luiza Simões de Castro Ferreira Leite, a quem dediquei um ensaio nas minhas Leituras Poliédricas (2002), mandou-nos comprar, logo no 3º ano, um livrinho que conservo religiosamente - Breves Noções de História da Literatura Portuguesa, da autoria de Renato Figueiredo (Porto, Editorial Domingos Barreira). Recordo-me de lhe ter dito: Então o que é isto? Só estão aqui duas mulheres? Eram a Marquesa de Alorna e a Florbela Espanca. Passou-me uma ideia pela cabeça: e se um dia eu fosse escritora? Passei a escrever contos em caderninhos, que não mostrava a ninguém…Muitos desses contos da Juvenilia acabaram numa fogueira que o meu irmão Joaquim fez no quintal, juntamente com as revistas francesas que eu assinava. Tudo bem, por ter deitado fogo aos contos, com meninas a morrer de desgosto de amor fechadas em colégios… Mas o que nunca lhe perdoei foi ter feito arder o meu Paris Match de Maio de 68!
Comecei a publicar contos apenas em 2008. A publicação de ensaios vem desde 1985.  A Mulher que Venceu Don Juan foi a primeira experiência, em Portugal, de um romance, cuja 1ª edição nasceu no Facebook, ao longo de 28 sábados, entre 2012 e 2013. A interação com os leitores foi permanente, não apenas para transmitir opinião, mas também para dar sugestões de continuidade da história. Acrescentei-lhe três capítulos e saiu pela Âncora Editora, em Dezembro de 2013. Baseou-se num caso real, que alterei muito, porque os protagonistas estão vivos e é necessário preservar a sua identidade.
Don Juan, neste romance, é um conceito apresentado na teoria e na prática através de três personagens - dois homens, Amaro e Manaças, bem como uma jovem mulher, Joana -, mostrando que o colecionismo não tem género exclusivo. Procurei focar os comportamentos donjuanescos do direito e do avesso, mostrando o poder da sedução, as manhas e as estratégias de caça, mas também os aspetos que esse avesso esconde, tais como narcisismo primário, mentira e dissimulação, recalcamento homofóbico e ressabiamento social.  Estes três sedutores são dois homens - um histriónico e um psicopata –, mas também uma mulher borderline. Todos eles muito atraentes, encantadores por fora e negros por dentro, ao tirarem a máscara da sedução. A protagonista - Sara Dornelas - é a típica vítima ingénua, casada aos dezassete anos com um cirurgião plástico inteligente, elegante, vinte anos mais velho, que atrai as mulheres primeiramente pela força da palavra, mas depois pela agressão física, não hesitando perante o crime. De crime morrerá ele também, às mãos da mais improvável das mulheres, que manipulou e abandonou, não cumprindo os deveres de pai.
O foco centralizador do romance é a recuperação das seduzidas, ao tomarem consciência da sua condição de vítimas. Procurando ilustrar problemas atuais através de personagens com um máximo de efeito de real, focam-se temas como a violência doméstica exercida sobre as mulheres, mas também por mulheres sobre os homens e sobre outras mulheres, em todas as classes sociais. Chamei a atenção para a violência nas relações intrafamiliares, patenteadas quer como abandono, ciúme e ansiedade da influência. Combati fortemente os preconceitos sobre a homossexualidade, traduzidos pela homofobia. Procurei mostrar os bas-fonds da prostituição, do proxenetismo, do tráfico de drogas, do crime organizado. No meio do pântano de afetos negativos, procurei transmitir esperança através de algumas personagens luminosas como a psicóloga Lúcia, mulher generosa que se desmultiplica em solidariedade, como forma de sublimação de um passado muito infeliz, sem nunca se vitimizar.
A vítima Sara Dornelas salva-se através do estudo, deixando para trás o passado de desocupada e deprimida, violentada pelo marido. Esta heroína terá como prémio a dignidade da vida que foi capaz de reconstruir e a descoberta do amor. Um amor verdadeiro de um homem que a incentivava a prosseguir, enquanto ele mesmo se libertava não apenas do álcool, mas também da Dona Juana que o oprimia.
Este romance faz parte do Plano Nacional de Leitura. Sobre ele foram  escritas duas  dissertações: de licenciatura, na Universidade de Bucareste, por Gabriel Alexandru Streinu (2014); de mestrado, por Ana Carolina Mendes Camilo: «Representações Femininas em A Mulher Que Venceu Don Juan», UNESP, Brasil, Janeiro de 2019.  Foi concluída e subsidiada pelo Instituto Camões a tradução na Roménia, estando em curso a tradução na Hungria.
O cineasta Leonel Brito criou e administra um blogue específico : http://amulherquevenceudonjuan.blogspot.com/

Em que áreas e sobre que autores investigou ao longo da carreira universitária?
Na década de 90 fiz parte da equipa do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa (1992 a 1995), nomeadamente na vertente da terminologia literária.  Estudei a obra de Vercors  Le Silence de La Mer (1942) no meu primeiro livro publicado, Si On Parle du Silence de La Mer (Editora Danúbio,1985).
Os autores portugueses que mais trabalhei foram José Rodrigues Miguéis, sobre o qual escrevi a dissertação de mestrado (O Imaginário de Lisboa na Ficção de José Rodrigues Miguéis (Editorial Etampa,1994), e David Mourão-Ferreira, com a tese de doutoramento, muito aumentada no livro Clave de Sol- Chave de Sombra. Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira (Âncora Editora, 2016).
Dirigi a Edição das Obras Completas de José Rodrigues Miguéis, no Círculo de Leitores (1994-1996), e assinei cada uma das introduções dos 13 volumes da Obra migueisiana. Coordenei a equipa de organização do Espólio Literário de David Mourão-Ferreira, na Fundação Calouste Gulbenkian / Ministério da Educação (1997-2004). No meu livro de ensaios Leituras Poliédricas (Universitária Editora, 2002) apresento diversos estudos sobre Cesário Verde, Gomes Leal, Raul Brandão, Vitorino Nemésio e sobre os contemporâneos Eugénio Lisboa, João de Melo, Onésimo Teotónio de Almeida, entre outros.
Em 1989, foi atribuído o Prémio José Régio ao meu ensaio «O Eu em Régio - A dicotomia de Logos e Eros», incluído atualmente em Leituras Poliédricas. O jornal A Guarda noticiou este prémio, sem referir que a vencedora era uma mulher guardense. Tive pena que o não tivesse referido.

Hoje sente-se mais ficcionista ou ensaísta?
Penso que uma particularidade da minha escrita de ficção seja a confluência com o plano do ensaio. Em A Mulher que Venceu Don Juan uma jovem doutoranda defende uma tese sobre o Diário do Sedutor de Kierkegaard, duplicando no plano teórico o que se passa no plano da ação do romance. O romance que tenho em mãos, centrado no sequestro e assassínio de Aldo Moro, em Roma (1978), alia também a investigação histórica à ficção propriamente dita.
Como cidadã e como escritora, entendo que não podemos ter uma visão exterior do tempo em que vivemos, muito menos uma posição acomodada do nosso papel. O tempo em que vivemos depende do nosso empenhamento, determinação e ação. A literatura não pode ser apenas mero exercício de linguagem. A literatura tem de ser uma escrita de valor e de valores. Perguntaram um dia a David Mourão-Ferreira para quem escrevia e respondeu: escrevo para as pessoas comuns, como forma de diálogo com elas, para os inquietos, os inconformistas, para os que resistem e não desistem de melhorar o tempo em que vivem. Para os que querem fazer a diferença, conforme nos ensinou José Rodrigues Miguéis n’O Espelho Poliédrico“A melhor maneira de ser igual aos outros não é ser como eles, mas ser diferente: é sermos nós-mesmos até ao limite. O que torna os homens iguais é o direito a serem diversos.”
Neste tempo em que vivemos, os agentes culturais, mantendo a sua identidade e diversidade, têm de juntar esforços para a promoção da cultura. Conforme nos disse Albert Camus, “Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação autêntica é um dom para o futuro.”
Teresa Martins Marques é presidente do PEN Clube Português. Investigadora integrada no CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa).

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