terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA À PRESIDENTE DO PEN CLUBE Teresa Martins Marques, ex-aluna do Liceu, vem à Guarda no dia 14



Teresa Martins Marques, presidente do PEN Clube português, vem esta sexta-feira à Guarda para aqui lançar o seu romance “A mulher que venceu Don Juan”. Teresa Martins Marques (TMM), com ligações familiares aos Gagos (S. Pedro do Jarmelo), concelho da Guarda, fez o Ensino Secundário no Liceu Nacional da Guarda em 1967/68 e 1968/69. Entretanto fez a sua carreira na Faculdade de Letras de Lisboa, tendo muitas publicações na área dos estudos literários. Dirigiu a publicação das obras completas de José Rodrigues Miguéis e orientou a organização do espólio literário de David Mourão-Ferreira. Na ficção escreveu conto e romance, tendo também experimentado a biografia e o teatro. TMM aceitou gentilmente dar-nos uma entrevista, que dividiremos em duas partes. A primeira Parte trata das suas ligações à Guarda.

Tem ligações familiares à Guarda? Mantém contactos com a cidade?
As ligações da minha família ao concelho e à cidade da Guarda são muito antigas. Não tive ainda tempo de pesquisar a família, para além dos meus bisavós paternos e maternos, todos eles nascidos em Gagos, freguesia de São Pedro do Jarmelo. Os meus pais, já falecidos, foram residentes no centro histórico da Guarda, a partir da década de sessenta. Resta-me ainda na Guarda a minha irmã Maria Helena Faria, educadora de infância, e o marido, José Monteiro Faria, funcionário das Finanças, aposentado. Entre os primos residentes na Guarda, mantenho contacto com a advogada Graça Cabral Marques, que se tem distinguido no Mecenato Cultural. Eduardo Lourenço é meu primo por afinidade e o Cardeal Dom José Saraiva Martins, também meu primo, aprendeu quantas eram as pessoas da Santíssima Trindade nas aulas de catequese de minha Tia, Dona Maria da Purificação Coelho, uma fervorosa dirigente da Ação Católica. Essa Tia, para me livrar dos pecados do inferno, tudo fez para que, aos dez anos, meus pais me colocassem num internato de freiras - o Colégio de Nossa Senhora da Bonança, em Gaia.

Como recorda os tempos do Liceu?
Frequentei o Liceu da Guarda nos anos letivos de 1967/68 e 1968/69. O meu pai recusava-se a deixar-me sair do Colégio, mas eu forcei a saída, porque nas férias grandes apaixonei-me por um primo direito, muito cábula, a quem dava explicações de Francês e se arriscava a ir para a tropa como soldado raso, se não concluísse o quinto ano.
Habituada à vida do Porto, achei a Guarda bastante parada e resolvi agitar as águas. No Colégio da Bonança tinha frequentado um curso de cinema com José Vieira Marques, que, a partir dos anos 70, seria o diretor do Festival de Cinema da Figueira da Foz. Tratei de falar com o professor de Religião e Moral, o Padre Canaveira Campos, e fundámos um Cineclube. O Padre Canaveira, que não tardaria a “despadrar-se”, era um revolucionário. Levava-nos para sua casa, ali à Rua dos Ferreiros, para lermos poemas da Praça da Canção e ouvirmos Bob Dylan (Blonde on Blonde, Nashville Skyline...). Mas nem tudo era revolução clandestina. Em nome da tradição, lá tive de ir ao Castelo de Belmonte, em nome dos alunos do Liceu, fazer um discurso nas Comemorações do 5º Centenário do Nascimento de Pedro Álvares Cabral. Se a memória não me falha, o Dr. João Fernandes, professor de Latim e diretor do Riacho, viria a publicá-lo aqui.
 Na portaria, em letras gordas, uma circular rezava assim: “As alunas não podem entrar nas aulas com indumentária masculina.” Num dia invernoso tentei a sorte. Vesti umas calças de fazenda bege e apresentei-me na portaria do Liceu, toda lampeira. O Sr. Manuel porteiro agarra-me pelo braço: - Psst, ó menina! Pra onde é que pensa que vai? Não pode entrar de calças! - Ai não? Então chame o Sr. Reitor! - Era o que faltava! Incomodar o sr. Reitor! Aqui não entra! - Se não o chama, vou eu lá ter com ele à Reitoria. E toca de avançar… - Espere aí!  Valha-me Deus! Esta rapariga é levada da breca! Era.
O Sr. Reitor, o saudoso Dr. Abílio Alves Bonito Perfeito, Presidente da Junta Diocesana da Ação Católica na Guarda, era meu professor de Grego. Muito educado e contido, dava-me na veneta fazê-lo rir nas aulas, o que não era fácil, convenhamos. Mas certo dia ouvi-lhe uma gargalhada, quando ele traduzia a palavra grega correspondente a “beleza”:  Ah! mas isso é o pó-de-arroz da minha mãe, o Tokalon…
Voltando à história das calças, o Sr. Manuel porteiro não teve outro remédio senão chamar pelo intercomunicador: - Sr. Reitor, está aqui uma aluna, a Teresa do 6º ano, que quer por força entrar de calças… E diz que não sai daqui sem falar com o Sr. Reitor!
Já passava das quatro da tarde, anoitecia cedo naqueles dias de Novembro. Não foi pouco o frio que rapei à espera. Finalmente, lá apareceu o Reitor, de mãos atrás das costas.  - Então o que temos?  Olhe, Sr. Reitor, temos que aquela circular diz que as alunas não podem entrar nas aulas com indumentária masculina e eu só tenho aulas da parte da manhã! - Hum… - Não vou para as aulas!  Vou à papelaria comprar folhas de ponto. - E não podia esperar para amanhã?  - Não senhor, não podia! O Sr. Reitor marcou o ponto de Grego para as oito e meia e a papelaria só abre às nove! O Sr. Reitor olhou para a pupila e não conseguiu disfarçar o sorriso. - Sr. Manuel, deixe lá entrar a aluna, por esta vez…
Tinha-me tornado muito popular no Liceu e não foi difícil votarem-me para Presidente da Comissão de Festas de Finalistas. Levámos à cidade o Quarteto 1111 e não foi pequena a honra de o Reitor me convidar para abrir o Baile a dançar com ele, dessa vez de vestido de lamé a rigor… Já aposentado, longas cartas ele me escreveu de Burgães, perto de Santo Tirso, onde terminaria os seus dias.

Como recorda a sua participação no jornal escolar RIACHO, em que encontrámos o seu nome?
O professor de Latim, Dr. João Fernandes, tratou de me nomear redatora principal do Riacho. Fazia de tudo no jornal: fraca poesia, crónica de lendas e costumes, que ia buscar à tese de licenciatura, que ele tinha apresentado em Coimbra, orientado pelo Prof. Paiva Boléo. Angariei pessoalmente a publicidade do Riacho, com o estratagema de entrar nas lojas e de dizer que o meu pai enviava cumprimentos. A uma menina tão sorridente não havia lojista que recusasse vinte escudos!
Corria tudo de vento em popa, mas eu tinha de produzir mais adrenalina! Nada melhor do que uma boa partida ao Dr. João Fernandes. Durante dois anos seguidos lá estava ele à porta da sala de aula e não havia maneira de aquele senhor nos dar um “furo”! Dizia ele que só faltaria às aulas quando morresse. Já quase no fim do 7º ano, chega a hora da aula de Latim e ele não aparece! Agarrei uma colega por um braço: - Vamos a casa do Professor saber dele! Ele morava mesmo ao fundo da rua do Liceu, perto do Colégio das Lurdinhas. Toquei à porta e apareceu a dona da casa. - Minha Senhora, vimos dar-lhe os sentimentos… disse eu, com ar falsamente contristado. - Os sentimentos? Mas quem é que morreu?  - Estamos muito aflitas, o seu marido disse que só faltava às aulas quando morresse e ele hoje faltou à aula! A senhora desatou a rir: - Pois foi mesmo um caso de morte, teve de ir a um enterro. - Ora ainda bem, porque nós não queríamos ir ao dele!
No dia seguinte, quando o Dr. João Fernandes apareceu na aula, não hesitou:  - Foste tu a da ideia! E eu com cara estanhada: Loquerisne linguam latinam?
(II Parte da Entrevista amanhã)

0 comentários :

Enviar um comentário

Os comentários anónimos serão rejeitados.