Teresa
Martins Marques, presidente do PEN Clube português, vem esta sexta-feira à
Guarda para aqui lançar o seu romance “A mulher que venceu Don Juan”. Teresa
Martins Marques (TMM), com ligações familiares aos Gagos (S. Pedro do Jarmelo),
concelho da Guarda, fez o Ensino Secundário no Liceu Nacional da Guarda em 1967/68 e 1968/69.
Entretanto fez a sua carreira na Faculdade de Letras de Lisboa, tendo muitas
publicações na área dos estudos literários. Dirigiu a publicação das obras
completas de José Rodrigues Miguéis e orientou a organização do espólio
literário de David Mourão-Ferreira. Na ficção escreveu conto e romance, tendo
também experimentado a biografia e o teatro. TMM aceitou gentilmente dar-nos
uma entrevista, que dividiremos em duas partes. A primeira Parte trata das suas
ligações à Guarda.
Tem ligações
familiares à Guarda? Mantém contactos com a cidade?
As ligações da minha família ao
concelho e à cidade da Guarda são muito antigas. Não tive ainda tempo de
pesquisar a família, para além dos meus bisavós paternos e maternos, todos eles
nascidos em Gagos, freguesia de São Pedro do Jarmelo. Os meus pais, já
falecidos, foram residentes no centro histórico da Guarda, a partir da década
de sessenta. Resta-me ainda na Guarda a minha irmã Maria Helena Faria,
educadora de infância, e o marido, José Monteiro Faria, funcionário das
Finanças, aposentado. Entre os primos residentes na Guarda, mantenho contacto
com a advogada Graça Cabral Marques, que se tem distinguido no Mecenato Cultural.
Eduardo Lourenço é meu primo por afinidade e o Cardeal Dom José Saraiva
Martins, também meu primo, aprendeu quantas eram as pessoas da Santíssima
Trindade nas aulas de catequese de minha Tia, Dona Maria da Purificação Coelho,
uma fervorosa dirigente da Ação Católica. Essa Tia, para me livrar dos pecados
do inferno, tudo fez para que, aos dez anos, meus pais me colocassem num
internato de freiras - o Colégio de Nossa Senhora da Bonança, em Gaia.
Como recorda
os tempos do Liceu?
Frequentei o Liceu da Guarda nos
anos letivos de 1967/68 e 1968/69. O meu pai recusava-se a deixar-me sair do
Colégio, mas eu forcei a saída, porque nas férias grandes apaixonei-me por um
primo direito, muito cábula, a quem dava explicações de Francês e se arriscava
a ir para a tropa como soldado raso, se não concluísse o quinto ano.
Habituada à vida do Porto, achei a Guarda
bastante parada e resolvi agitar as águas. No Colégio da Bonança tinha
frequentado um curso de cinema com José Vieira Marques, que, a partir dos anos
70, seria o diretor do Festival de Cinema da Figueira da Foz. Tratei de falar com
o professor de Religião e Moral, o Padre Canaveira Campos, e fundámos um
Cineclube. O Padre Canaveira, que não tardaria a “despadrar-se”, era um
revolucionário. Levava-nos para sua casa, ali à Rua dos Ferreiros, para lermos
poemas da Praça da Canção e ouvirmos Bob Dylan (Blonde on Blonde,
Nashville Skyline...). Mas nem tudo era revolução clandestina. Em nome da
tradição, lá tive de ir ao Castelo de Belmonte, em nome dos alunos do Liceu, fazer
um discurso nas Comemorações do 5º Centenário do Nascimento de Pedro Álvares
Cabral. Se a memória não me falha, o Dr. João Fernandes, professor de Latim e
diretor do Riacho, viria a publicá-lo aqui.
Na portaria, em letras gordas, uma circular
rezava assim: “As alunas não podem entrar nas aulas com indumentária
masculina.” Num dia invernoso tentei a sorte. Vesti umas calças de fazenda bege
e apresentei-me na portaria do Liceu, toda lampeira. O Sr. Manuel porteiro agarra-me
pelo braço: - Psst, ó menina! Pra onde é que pensa que vai? Não pode entrar
de calças! - Ai não? Então chame o Sr. Reitor! - Era o que faltava! Incomodar o
sr. Reitor! Aqui não entra! - Se não o chama, vou eu lá ter com ele à Reitoria.
E toca de avançar… - Espere aí! Valha-me
Deus! Esta rapariga é levada da breca! Era.
O Sr. Reitor, o saudoso Dr. Abílio
Alves Bonito Perfeito, Presidente
da Junta Diocesana da Ação Católica na Guarda, era meu professor de Grego. Muito
educado e contido, dava-me na veneta fazê-lo rir nas aulas, o que não era fácil,
convenhamos. Mas certo dia ouvi-lhe uma gargalhada, quando ele traduzia a
palavra grega correspondente a “beleza”: Ah! mas isso é o pó-de-arroz da minha mãe, o
Tokalon…
Voltando à história das calças, o
Sr. Manuel porteiro não teve outro remédio senão chamar pelo intercomunicador: -
Sr. Reitor, está aqui uma aluna, a Teresa do 6º ano, que quer por força
entrar de calças… E diz que não sai daqui sem falar com o Sr. Reitor!
Já passava das quatro da tarde, anoitecia
cedo naqueles dias de Novembro. Não foi pouco o frio que rapei à espera.
Finalmente, lá apareceu o Reitor, de mãos atrás das costas. - Então o que temos? Olhe, Sr. Reitor, temos que aquela circular
diz que as alunas não podem entrar nas aulas com indumentária masculina e eu só
tenho aulas da parte da manhã! - Hum… - Não vou para as aulas! Vou à papelaria comprar folhas de ponto. - E
não podia esperar para amanhã? - Não
senhor, não podia! O Sr. Reitor marcou o ponto de Grego para as oito e meia e a
papelaria só abre às nove! O Sr. Reitor olhou para a pupila e não conseguiu
disfarçar o sorriso. - Sr. Manuel, deixe lá entrar a aluna, por esta vez…
Tinha-me tornado muito popular no
Liceu e não foi difícil votarem-me para Presidente da Comissão de Festas de
Finalistas. Levámos à cidade o Quarteto 1111 e não foi pequena a honra
de o Reitor me convidar para abrir o Baile a dançar com ele, dessa vez de vestido
de lamé a rigor… Já aposentado, longas cartas ele me escreveu de
Burgães, perto de Santo Tirso, onde terminaria os seus dias.
O professor de Latim, Dr. João Fernandes,
tratou de me nomear redatora principal do Riacho. Fazia de tudo no
jornal: fraca poesia, crónica de lendas e costumes, que ia buscar à tese de
licenciatura, que ele tinha apresentado em Coimbra, orientado pelo Prof. Paiva
Boléo. Angariei pessoalmente a publicidade do Riacho, com o estratagema
de entrar nas lojas e de dizer que o meu pai enviava cumprimentos. A uma menina
tão sorridente não havia lojista que recusasse vinte escudos!
Corria tudo de vento em popa, mas eu
tinha de produzir mais adrenalina! Nada melhor do que uma boa partida ao Dr.
João Fernandes. Durante dois anos seguidos lá estava ele à porta da sala de
aula e não havia maneira de aquele senhor nos dar um “furo”! Dizia ele que só
faltaria às aulas quando morresse. Já quase no fim do 7º ano, chega a hora da
aula de Latim e ele não aparece! Agarrei uma colega por um braço: - Vamos a
casa do Professor saber dele! Ele morava mesmo ao fundo da rua do Liceu,
perto do Colégio das Lurdinhas. Toquei à porta e apareceu a dona da casa. - Minha
Senhora, vimos dar-lhe os sentimentos… disse eu, com ar falsamente
contristado. - Os sentimentos? Mas quem é que morreu? - Estamos muito aflitas, o seu marido disse
que só faltava às aulas quando morresse e ele hoje faltou à aula! A senhora
desatou a rir: - Pois foi mesmo um caso de morte, teve de ir a um enterro. -
Ora ainda bem, porque nós não queríamos ir ao dele!
No dia seguinte, quando o Dr. João
Fernandes apareceu na aula, não hesitou: - Foste tu a da ideia! E eu com cara estanhada:
Loquerisne linguam latinam?
(II Parte da Entrevista amanhã)
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