Ângela Canez em 5 produções (ver descrição no final) |
“Estou de passagem: amo o efémero.”
Eugénio de Andrade
À partida: O Teatro
– Faltam
5 minutos para o público entrar – vêm chamar-nos.
É preciso deixar os bastidores, partir para palco.
Confirmo se tenho tudo, o figurino, a máscara. Será que o cenário ainda lá
está? Às vezes, quando estou do lado de fora, duvido. Por dentro, trago todos
os caminhos, obstáculos e labirintos. É uma linha muito ténue que me separa da
realidade. Tento afastar as imagens, descalço-me.
– Vou abrir as portas.
Procuro interiormente as falas, será que me vou
esquecer? No palco, entreolhamo-nos. Uma mistura de nervosismo com um
entusiasmo desmedido.
– O público vai entrar!
As primeiras pessoas entram. Que se sentem, esta noite
são os nossos convidados.
Quando saí do Liceu, há 18 anos atrás, não sabia que
poderia vir a pisar um palco num contexto profissional. Se visse um vislumbre
deste instante não acreditaria. Quando parti da Guarda, não sabia também como a
vida de uma principiante das artes pode ser precária, fugidia.
Nessa altura, fazia parte da equipa do Jornal
Expressão, ali alimentava o gosto pela construção de textos. Sabia que gostava
de poesia e o quanto a criatividade me cativava, mas não conhecia os caminhos
para lá chegar. Escolhi o curso de Psicologia, sem muitas
certezas. Imaginava o futuro em segmentos mais ou menos retos. Ignorava
ainda a quantidade de obstáculos e de como seria nas curvas que
aprenderia a dançar.
Parti para Coimbra com o argumento da Psicologia, mas
com muitos outros interesses. No ambiente borbulhante da universidade, comecei
a acumular as atividades extracurriculares: Oficina de Poesia, debates,
voluntariados. Até que, no terceiro ano, senti o embate: “Audições para o
Teatro Universitário”. Entrei na sala do TEUC e ali me apaixonei pelo fazer
teatral: uma forma de arte que me convocava por inteiro, voz, corpo, imaginação
e onde me podia transfigurar em mil outras vidas, atravessar a realidade e o
tempo. Quando acabava as aulas de Psicologia, deitava-me a correr
para essa caixa mágica onde tudo podia acontecer. E aconteceu, todas as noites,
durante esses dois anos, a alimentar o sonho.
Quando concluí o curso de Psicologia, essa paixão era
já muito clara. Desejei tirar logo de seguida a Licenciatura em Teatro, só que
já era tarde – pensei. Como conciliaria com um trabalho?
Demasiado tarde. Para tortuoso já bastava o caminho da Psicologia, que nem
frutos trazia. Comecei então a trabalhar num centro comercial e arrumei o
teatro na gaveta das loucuras e dos sonhos impossíveis.
Depois de Coimbra, parti para Lisboa, continuando a
sequela de empregos precários, muito afora do Teatro ou mesmo da Psicologia.
Não era como tinha imaginado. Mas talvez a vida fosse mesmo assim – cinzenta.
Estava só na realidade a querer agarrar-me a uma lógica tão linear que doía.
Tentava adaptar-me, calar as partes de mim que ainda sentiam o apelo das
tábuas. Um tempo árido. O teatro acenava ao longe, mas que ficasse na sua
gaveta, negava-o, murchava, escurecia.
Só que no meio do deserto, são mais nítidas as luzes,
e elas gritavam, remexiam, invadiam. Aos poucos, rendia-me à evidência: era
urgente reatar o amor antigo. Procurei um grupo de teatro amador, apenas
algumas horas por semana, mas que progressivamente se
multiplicaram: sentia a vida a regressar.
Passei então a conciliar o Teatro com um trabalho de
Call Center, dormia menos, mas tinha mais energia. O teatro era um motor que me
alimentava, me conquistava a ir mais fundo. Tinha-me apercebido que nesta arte,
não basta o sonho, é precisa também muita formação e eu procurava-a fortemente.
Durante anos, tive aulas de teatro à noite, mas a dada altura já não bastava -
era necessário o salto.
Quando terminei o curso de Psicologia, pensei que já
era tarde para estudar teatro. Só que depois de vários anos a repetir essas
palavras, elas gastaram-se: estava liberta para mais uma viagem. Parti para o
Porto, aos 33 anos, para tirar a Licenciatura em Teatro. Por fim, ousei
mergulhar na formação teatral, mesmo tendo de conciliar com um
part-time num restaurante. Na ESMAE, aprendi como o ofício de ator se faz de
muito treino. Às vezes há instantes de palco, mas também muitos outros de
bastidores e estudo para os suster. Há que trabalhar, a voz, a imaginação, o
corpo e ainda assim aceitar que às vezes a inspiração falta ao encontro marcado:
é preciso fazer da incerteza uma força.
Quando comecei o curso, não imaginava que, no último
semestre, estaríamos numa pandemia. Mas a verdade é que, mesmo neste tempo de
incerteza, o teatro continuou a ser guia e motor para a adaptação à mudança.
Passei também a integrar grupos de teatro de improvisação online. Concluí assim
a última etapa do curso à distância e agora... estou outra vez de partida.
Em Janeiro, partirei para Espanha, para um estágio de
6 meses numa companhia de Teatro de Improvisação. São apenas 6 meses, sem saber
onde me irão levar, mas com fé no caminho.
Quando saí do Liceu, há 18 anos atrás, sentia já que o
mundo das artes me alumiava, mas não sabia ainda o quanto me era essencial. E
como continuaria a sê-lo, resistindo aos obstáculos. Se houve momentos de
desânimo? Sim. Teria havido caminhos mais diretos. Talvez. Se às vezes mete
medo o futuro? Completamente. Mas há também momentos de entrega e partilha que
fazem o demais valer a pena.
– O teatro vai fechar!
O público já saiu, é tempo de fazer as malas. Meto
todas as fotografias na mala, escolho as mais nítidas e afasto-me. Por diante
tenho ainda muitos corredores, obstáculos e labirintos. Às vezes haverá
aplausos, outras vezes ruas vazias. Não sei onde vão dar. Mas é o meu percurso
e abraço-o.
Agora é preciso sair dos bastidores. Há um palco
diante: o palco da Vida.
Estou de Partida.
Texto de
Ângela Canez
IMAGEM 1:"“Marat Sade”, de Peter Weiss, encenção de
Dinarte Branco, ESMAE, (29-01-2020) Foto: Diana Santos.
IMAGEM 2:Performance no grupo “The Improvfessionals”, no
Intercity Longform Improv Jam (Online) (30-08-2020). .
IMAGEM 3:Residência Artística do Festival SET, encenação
de Chris Tomlinson, Metro do Porto (14-07-2018).
IMAGEM 4:Performance no lançamento do livro “Um segredo
esquecido para atear Paixões” de Sílvia Raposo, FNAC, Lisboa (2017).
IMAGEM 5:"Comissão de Inquérito ao Banqueiro
Anarquista" de Catarina Viegas a partir de Fernando Pessoa, encenação de
Mouzinho Arsénio, Teatro Turim Lisboa, (24-11-2016), Foto: Carlos Muralhas.
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