terça-feira, 29 de dezembro de 2020

ÂNGELA CANEZ E O TEATRO Uma ex-aluna da ESAAG conta o seu percurso no Teatro

 



Ângela Canez em 5 produções
(ver descrição no final)

“Estou de passagem: amo o efémero.”

Eugénio de Andrade

À partida: O Teatro

 Faltam 5 minutos para o público entrar – vêm chamar-nos.

É preciso deixar os bastidores, partir para palco. Confirmo se tenho tudo, o figurino, a máscara. Será que o cenário ainda lá está? Às vezes, quando estou do lado de fora, duvido. Por dentro, trago todos os caminhos, obstáculos e labirintos. É uma linha muito ténue que me separa da realidade. Tento afastar as imagens, descalço-me.

– Vou abrir as portas.

Procuro interiormente as falas, será que me vou esquecer? No palco, entreolhamo-nos. Uma mistura de nervosismo com um entusiasmo desmedido.

– O público vai entrar!

As primeiras pessoas entram. Que se sentem, esta noite são os nossos convidados.

Quando saí do Liceu, há 18 anos atrás, não sabia que poderia vir a pisar um palco num contexto profissional. Se visse um vislumbre deste instante não acreditaria. Quando parti da Guarda, não sabia também como a vida de uma principiante das artes pode ser precária, fugidia.

Nessa altura, fazia parte da equipa do Jornal Expressão, ali alimentava o gosto pela construção de textos. Sabia que gostava de poesia e o quanto a criatividade me cativava, mas não conhecia os caminhos para lá chegar. Escolhi o curso de Psicologia, sem muitas certezas.  Imaginava o futuro em segmentos mais ou menos retos. Ignorava ainda a quantidade de  obstáculos e de como seria nas curvas que aprenderia a dançar.

Parti para Coimbra com o argumento da Psicologia, mas com muitos outros interesses. No ambiente borbulhante da universidade, comecei a acumular as atividades extracurriculares: Oficina de Poesia, debates, voluntariados. Até que, no terceiro ano, senti o embate: “Audições para o Teatro Universitário”. Entrei na sala do TEUC e ali me apaixonei pelo fazer teatral: uma forma de arte que me convocava por inteiro, voz, corpo, imaginação e onde me podia transfigurar em mil outras vidas, atravessar a realidade e o tempo.  Quando acabava as aulas de Psicologia, deitava-me a correr para essa caixa mágica onde tudo podia acontecer. E aconteceu, todas as noites, durante esses dois anos, a alimentar o sonho.

Quando concluí o curso de Psicologia, essa paixão era já muito clara. Desejei tirar logo de seguida a Licenciatura em Teatro, só que já era tarde  pensei. Como conciliaria com um trabalho? Demasiado tarde. Para tortuoso já bastava o caminho da Psicologia, que nem frutos trazia. Comecei então a trabalhar num centro comercial e arrumei o teatro na gaveta das loucuras e dos sonhos impossíveis.

Depois de Coimbra, parti para Lisboa, continuando a sequela de empregos precários, muito afora do Teatro ou mesmo da Psicologia. Não era como tinha imaginado. Mas talvez a vida fosse mesmo assim  cinzenta. Estava só na realidade a querer agarrar-me a uma lógica tão linear que doía. Tentava adaptar-me, calar as partes de mim que ainda sentiam o apelo das tábuas. Um tempo árido. O teatro acenava ao longe, mas que ficasse na sua gaveta,  negava-o, murchava, escurecia.

Só que no meio do deserto, são mais nítidas as luzes, e elas gritavam, remexiam, invadiam. Aos poucos, rendia-me à evidência: era urgente reatar o amor antigo. Procurei um grupo de teatro amador, apenas algumas horas por semana, mas que progressivamente se multiplicaram:  sentia a vida a regressar.

Passei então a conciliar o Teatro com um trabalho de Call Center, dormia menos, mas tinha mais energia. O teatro era um motor que me alimentava, me conquistava a ir mais fundo. Tinha-me apercebido que nesta arte, não basta o sonho, é precisa também muita formação e eu procurava-a fortemente. Durante anos, tive aulas de teatro à noite, mas a dada altura já não bastava - era necessário o salto.

Quando terminei o curso de Psicologia, pensei que já era tarde para estudar teatro. Só que depois de vários anos a repetir essas palavras, elas gastaram-se: estava liberta para mais uma viagem. Parti para o Porto, aos 33 anos, para tirar a Licenciatura em Teatro. Por fim, ousei mergulhar  na formação teatral, mesmo tendo de conciliar com um part-time num restaurante. Na ESMAE, aprendi como o ofício de ator se faz de muito treino. Às vezes há instantes de palco, mas também muitos outros de bastidores e estudo para os suster. Há que trabalhar, a voz, a imaginação, o corpo e ainda assim aceitar que às vezes a inspiração falta ao encontro marcado: é preciso fazer da incerteza uma força.

Quando comecei o curso, não imaginava que, no último semestre, estaríamos numa pandemia. Mas a verdade é que, mesmo neste tempo de incerteza, o teatro continuou a ser guia e motor para a adaptação à mudança. Passei também a integrar grupos de teatro de improvisação online. Concluí assim a última etapa do curso à distância e agora... estou outra vez de partida.

Em Janeiro, partirei para Espanha, para um estágio de 6 meses numa companhia de Teatro de Improvisação. São apenas 6 meses, sem saber onde me irão levar, mas com fé no caminho.

 

Quando saí do Liceu, há 18 anos atrás, sentia já que o mundo das artes me alumiava, mas não sabia ainda o quanto me era essencial. E como continuaria a sê-lo, resistindo aos obstáculos. Se houve momentos de desânimo? Sim. Teria havido caminhos mais diretos. Talvez. Se às vezes mete medo o futuro? Completamente. Mas há também momentos de entrega e partilha que fazem o demais valer a pena.

–  O teatro vai fechar!

O público já saiu, é tempo de fazer as malas. Meto todas as fotografias na mala, escolho as mais nítidas e afasto-me. Por diante tenho ainda muitos corredores, obstáculos e labirintos. Às vezes haverá aplausos, outras vezes ruas vazias. Não sei onde vão dar. Mas é o meu percurso e abraço-o.

Agora é preciso sair dos bastidores. Há um palco diante: o palco da Vida.

Estou de Partida.

Texto de Ângela Canez

IMAGEM 1:"“Marat Sade”, de Peter Weiss, encenção de Dinarte Branco, ESMAE, (29-01-2020) Foto: Diana Santos. 

IMAGEM 2:Performance no grupo “The Improvfessionals”, no Intercity Longform Improv Jam (Online) (30-08-2020). . 

IMAGEM 3:Residência Artística do Festival SET, encenação de Chris Tomlinson, Metro do Porto  (14-07-2018). 

IMAGEM 4:Performance no lançamento do livro “Um segredo esquecido para atear Paixões” de Sílvia Raposo, FNAC, Lisboa (2017).

IMAGEM 5:"Comissão de Inquérito ao Banqueiro Anarquista" de Catarina Viegas a partir de Fernando Pessoa, encenação de Mouzinho Arsénio, Teatro Turim Lisboa, (24-11-2016), Foto: Carlos Muralhas.

 

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