terça-feira, 26 de janeiro de 2021

AS CRÓNICAS DE LUÍS DOS SANTOS VEIGA (2) Hipnotismo e telepatia

 

HISTÓRIAS DOS ANOS 60

Hipnotismo e telepatia

por Luís dos Santos Veiga

No circo assistiram a um número de hipnotismo e telepatia e ficaram deslumbrados com tais “artes”.

Mais tarde, num qualquer jornal leram um minúsculo anúncio de um curso de hipnotismo por correspondência pelo preço de 150$00, do professor C. H. Kiernan. Dois deles associaram-se e abalançaram-se à compra, a meias (para um só, era muito dinheiro!). Lá foram recebendo os fascículos, semana após semana, enquanto iam estudando a matéria e exercitando conforme as instruções: treinar a fixação do olhar e aumentar o brilho dos olhos, intensificar a “força” do pensamento centrado numa ideia.

Um dos sócios breve deixou morrer o assunto. Mas o outro levou o caso bastante a peito e, nas férias, lá na aldeia, passou à primeira fase de aplicação: imobilizar galinhas e coelhos. Então, não é que começou a obter resultados!? Os bichos depois de se debaterem contra o aprisionamento ficavam imobilizados e, movimentando-os nas mãos, a sua cabeça mantinha-se na linha do olhar do operador ou, deitados sobre o dorso, lá ficavam hirtos — ficou a conhecer, assim, a explicação para o fenómeno que já observara na natureza de como as cobras dão caça aos pássaros.

Havia que passar à fase seguinte, mais avançada: hipnotizar alguém a selecionar conforme as lições. Em casa da ti Zanarota, na ausência dos que com ele partilhavam o quarto (nesse tempo poucos ocupavam um quarto individualmente, pois a economia familiar não consentia um tal “luxo”) levou a cabo algumas experiências com um paciente: incapacidade de separar as mãos com os dedos entrelaçados, não poder abrir os olhos, cair de frente e de costas como se fosse uma prancha e, ainda, não recordar esses acontecimentos, resultaram bem.

Importava, para continuar, diversificar a experimentação com outros pacientes; mas o material humano com as categorias convenientes à iniciação escasseava, pois uma tal “arte” não se revelava a qualquer um, que a divulgaria e poderia ser entendida como alguma coisa demoníaca, um bruxedo. Porém, os fascículos foram lidos até ao final e lá se falava do estado cataléptico e da telepatia.

Pensar em desenvolver a catalépsia, que requeria aturada prática da fase de hipnose mais leve, não; mas a telepatia, porque não?

Entretanto, os colegas integrantes daquele grupo, que era coeso, acompanharam o processo e foram participando. No Monteneve, à noite, depois da bica, àquela mesa, que até parecia terem avençado, pois encontravam-na sempre disponível, entremeando com o xadrez, a filosofia, a religião, a literatura, ..., e a política (pois então! embora com o cuidado a que obrigavam os tempos da trilogia “Deus, Pátria e Família”), designava-se um elemento do grupo como recetor e os outros emitiam, combinadamente, uma mensagem simples, como a ideia de um objeto. Também, nalgumas daquelas aulas desinteressantes, em vez de se bocejar, dava-se “ordem” a algum colega para que olhasse para trás ou fizesse um determinado movimento. Com boa frequência as experiências resultavam! Estava visto, a telepatia “funcionava”, não era assim tão complexa, havia que a desenvolver.

Naquele ano peregrinavam pelo país as relíquias de São Francisco Xavier, o apóstolo das Índias, que chegariam pelo lusco-fusco de um dia de primavera já avançada ou mesmo verão entrado, com as noites convidativas ao passeio depois do jantarinho. Os crentes pela fé, outros pelo ato social naturalmente associado ao importante evento religioso e outros ainda por ser boa ocasião de apreciarem as moçoilas, vistosas, já com vestes estivais (ainda que não como as de hoje...), formavam uma grande mole humana que aguardava desde a Sé, onde as relíquias pernoitariam após um solene Te Deum, até à estrada que vem da Covilhã, junto ao Sanatório Dr. Sousa Martins.

Aqui, entre a multidão, um grupo de três ou quatro raparigas, bonitotas, despertou a atenção dos “artistas”. Decidiram transmitir-lhes a “ordem” de passarem, num e noutro sentido, entre dois determinados candeeiros da rua. E não é que elas acabaram por obedecer?  Ninguém deu por nada, nem mesmo elas, pois o ato de passear, naquelas circunstâncias, nada tinha de extraordinário; mas eles sabiam o que acontecera...

Pouco depois, na Praça Velha, o que levara o assunto mais a peito decidiu, agora sozinho, “ordenar” a uma rapariga, também sozinha, que subisse e descesse, repetidamente, a escadaria do edifício ali junto à Sé, à direita de quem vai entrar. Foi grande o pasmo dos circunstantes que não podiam perceber o que se passava com a rapariga, que parecia tola, a subir e descer as escadas sem mais nem pra quê, chega ao fundo volta para cima, chega ao cimo volta para baixo; estaria ela ali, com pouca fé, e por isso possessa? — ter-se-ão perguntado, porventura. Às tantas ela “acordou”, ficou estranhada consigo própria, sentiu-se envergonhada com as gentes a olhá-la e não aguardou mais pelas relíquias do santinho, que, diga-se em abono da verdade, já tardavam demasiado — o lusco-fusco há muito dera vez à noite estrelada.

Entretanto, um outro colega decidiu, só por si, levar a cabo algumas experiências mais arrojadas: “pôs” uma rapariga a caminho da mata até que ela “acordou” e arrepiou caminho; “pôs” uma outra, na sala de espera de um consultório médico, a debater-se, irrequieta e insegura, entre subir um pouco mais e fazer descer a saia (as modas não eram as de hoje, e menos ainda as atitudes em sociedade!) — em qualquer caso, natruralmente, a moral em que se fora educado, a cultura, a personalidade, enfim, acabavam por prevalecer.

Mais tarde, no tempo de Coimbra, hipnotizou, com prévia aceitação, uma rapariga da sua convivência, que desatou a língua e foi pondo a vidinha ao sol; não seria dos mais fundos aquele poço e nele não se atulhariam grandes façanhas secretas, mas, ainda assim, começaram a surgir revelações que não se fazem de ânimo leve — por isso mandou a ética pôr fim à sessão, não sem que primeiro ficasse assegurado, para sossego da paciente, o esquecimento completo do acontecido durante a hipnose.

Depois veio o tempo do serviço militar em Mafra e nas Caldas da Rainha; aqui conheceu uma rapariga infortunada por uma paixão a que um camarada oficial já não correspondia. Pediu-lhe ela para indagar se ainda poderia ter esperanças. Abordado, o algoz foi definitivo: o desinteresse era total, havia um romance mais cativante, ela só tinha que esquecer; logo...

Acompanhada por uma irmã, que as bocas do mundo eram “bífidas” e, sabia-se lá, talvez até ele a julgasse uma qualquer, veio ao combinado encontro noturno para saber do resultado da embaixada: andara a enganá-la o malvado, mas continuava a amá-lo, lamentava-se a pobre de Cristo, debulhada em lágrimas, que parecia uma Maria Madalena!

O sofrimento parecia grande e não seria alma caridosa se não procurasse aliviá-la. Lembrou-se da telepatia e instruiu a sofredora para que, quando se deitasse, pensasse intensamente em si, que o poder benfazejo lá chegaria; e terá chegado, pois, no dia seguinte, disse sentir-se mais apaziguada! Seguiram-se mais algumas sessões (como convinha...) e a paixão passou, vejam só, substituída por outro interesse, mas que também não poderia durar muito — aquilo, ali, era como uma antecâmara onde se aguardava guia de marcha para a Guerra Colonial.

O novo desenlace, porém, já foi pacífico, pois houve o cuidado de orientar este interesse de modo a que o platonismo desse lugar, por inteiro, a um substantivo mais concreto.

Telepatia, ou talvez não.

(Imagem guiadahipnose.com.br)

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