HISTÓRIAS DOS ANOS 60
Hipnotismo e telepatia
por Luís dos Santos Veiga
No circo assistiram a
um número de hipnotismo e telepatia e ficaram deslumbrados com tais “artes”.
Mais tarde, num
qualquer jornal leram um minúsculo anúncio de um curso de hipnotismo por
correspondência pelo preço de 150$00, do professor C. H. Kiernan. Dois deles
associaram-se e abalançaram-se à compra, a meias (para um só, era muito
dinheiro!). Lá foram recebendo os fascículos, semana após semana, enquanto iam
estudando a matéria e exercitando conforme as instruções: treinar a fixação do
olhar e aumentar o brilho dos olhos, intensificar a “força” do pensamento
centrado numa ideia.
Um dos sócios breve
deixou morrer o assunto. Mas o outro levou o caso bastante a peito e, nas
férias, lá na aldeia, passou à primeira fase de aplicação: imobilizar galinhas
e coelhos. Então, não é que começou a obter resultados!? Os bichos depois de se
debaterem contra o aprisionamento ficavam imobilizados e, movimentando-os nas
mãos, a sua cabeça mantinha-se na linha do olhar do operador ou, deitados sobre
o dorso, lá ficavam hirtos — ficou a conhecer, assim, a explicação para o
fenómeno que já observara na natureza de como as cobras dão caça aos pássaros.
Havia que passar à fase
seguinte, mais avançada: hipnotizar alguém a selecionar conforme as lições. Em
casa da ti Zanarota, na ausência dos que com ele partilhavam o quarto (nesse
tempo poucos ocupavam um quarto individualmente, pois a economia familiar não
consentia um tal “luxo”) levou a cabo algumas experiências com um paciente:
incapacidade de separar as mãos com os dedos entrelaçados, não poder abrir os
olhos, cair de frente e de costas como se fosse uma prancha e, ainda, não
recordar esses acontecimentos, resultaram bem.
Importava, para
continuar, diversificar a experimentação com outros pacientes; mas o material
humano com as categorias convenientes à iniciação escasseava, pois uma tal
“arte” não se revelava a qualquer um, que a divulgaria e poderia ser entendida
como alguma coisa demoníaca, um bruxedo. Porém, os fascículos foram lidos até
ao final e lá se falava do estado cataléptico e da telepatia.
Pensar em desenvolver a
catalépsia, que requeria aturada prática da fase de hipnose mais leve, não; mas
a telepatia, porque não?
Entretanto, os colegas
integrantes daquele grupo, que era coeso, acompanharam o processo e foram
participando. No Monteneve, à noite, depois da bica, àquela mesa, que até
parecia terem avençado, pois encontravam-na sempre disponível, entremeando com
o xadrez, a filosofia, a religião, a literatura, ..., e a política (pois então!
embora com o cuidado a que obrigavam os tempos da trilogia “Deus, Pátria e
Família”), designava-se um elemento do grupo como recetor e os outros emitiam,
combinadamente, uma mensagem simples, como a ideia de um objeto. Também,
nalgumas daquelas aulas desinteressantes, em vez de se bocejar, dava-se “ordem”
a algum colega para que olhasse para trás ou fizesse um determinado movimento.
Com boa frequência as experiências resultavam! Estava visto, a telepatia
“funcionava”, não era assim tão complexa, havia que a desenvolver.
Naquele ano
peregrinavam pelo país as relíquias de São Francisco Xavier, o apóstolo das
Índias, que chegariam pelo lusco-fusco de um dia de primavera já avançada ou
mesmo verão entrado, com as noites convidativas ao passeio depois do
jantarinho. Os crentes pela fé, outros pelo ato social naturalmente associado
ao importante evento religioso e outros ainda por ser boa ocasião de apreciarem
as moçoilas, vistosas, já com vestes estivais (ainda que não como as de hoje...),
formavam uma grande mole humana que aguardava desde a Sé, onde as relíquias
pernoitariam após um solene Te Deum,
até à estrada que vem da Covilhã, junto ao Sanatório Dr. Sousa Martins.
Aqui, entre a multidão,
um grupo de três ou quatro raparigas, bonitotas,
despertou a atenção dos “artistas”. Decidiram transmitir-lhes a “ordem” de
passarem, num e noutro sentido, entre dois determinados candeeiros da rua. E
não é que elas acabaram por obedecer?
Ninguém deu por nada, nem mesmo elas, pois o ato de passear, naquelas
circunstâncias, nada tinha de extraordinário; mas eles sabiam o que
acontecera...
Pouco depois, na Praça
Velha, o que levara o assunto mais a peito decidiu, agora sozinho, “ordenar” a
uma rapariga, também sozinha, que subisse e descesse, repetidamente, a
escadaria do edifício ali junto à Sé, à direita de quem vai entrar. Foi grande
o pasmo dos circunstantes que não podiam perceber o que se passava com a
rapariga, que parecia tola, a subir e descer as escadas sem mais nem pra quê,
chega ao fundo volta para cima, chega ao cimo volta para baixo; estaria ela ali, com pouca fé, e por isso
possessa? — ter-se-ão perguntado, porventura. Às tantas ela “acordou”,
ficou estranhada consigo própria, sentiu-se envergonhada com as gentes a
olhá-la e não aguardou mais pelas relíquias do santinho, que, diga-se em abono
da verdade, já tardavam demasiado — o lusco-fusco há muito dera vez à noite
estrelada.
Entretanto, um outro
colega decidiu, só por si, levar a cabo algumas experiências mais arrojadas:
“pôs” uma rapariga a caminho da mata até que ela “acordou” e arrepiou caminho;
“pôs” uma outra, na sala de espera de um consultório médico, a debater-se,
irrequieta e insegura, entre subir um pouco mais e fazer descer a saia (as
modas não eram as de hoje, e menos ainda as atitudes em sociedade!) — em qualquer
caso, natruralmente, a moral em que se fora educado, a cultura, a
personalidade, enfim, acabavam por prevalecer.
Mais tarde, no tempo de
Coimbra, hipnotizou, com prévia aceitação, uma rapariga da sua convivência, que
desatou a língua e foi pondo a vidinha ao sol; não seria dos mais fundos aquele
poço e nele não se atulhariam grandes façanhas secretas, mas, ainda assim,
começaram a surgir revelações que não se fazem de ânimo leve — por isso mandou
a ética pôr fim à sessão, não sem que primeiro ficasse assegurado, para sossego
da paciente, o esquecimento completo do acontecido durante a hipnose.
Depois veio o tempo do
serviço militar em Mafra e nas Caldas da Rainha; aqui conheceu uma rapariga
infortunada por uma paixão a que um camarada oficial já não correspondia.
Pediu-lhe ela para indagar se ainda poderia ter esperanças. Abordado, o algoz foi definitivo: o desinteresse era
total, havia um romance mais cativante, ela só tinha que esquecer; logo...
Acompanhada por uma
irmã, que as bocas do mundo eram “bífidas” e, sabia-se lá, talvez até ele a
julgasse uma qualquer, veio ao combinado encontro noturno para saber do
resultado da embaixada: andara a
enganá-la o malvado, mas continuava a amá-lo, lamentava-se a pobre de Cristo,
debulhada em lágrimas, que parecia uma Maria Madalena!
O sofrimento parecia
grande e não seria alma caridosa se não procurasse aliviá-la. Lembrou-se da
telepatia e instruiu a sofredora para que, quando se deitasse, pensasse
intensamente em si, que o poder benfazejo lá chegaria; e terá chegado, pois, no
dia seguinte, disse sentir-se mais apaziguada! Seguiram-se mais algumas sessões
(como convinha...) e a paixão passou, vejam só, substituída por outro
interesse, mas que também não poderia durar muito — aquilo, ali, era como uma
antecâmara onde se aguardava guia de marcha para a Guerra Colonial.
O novo desenlace,
porém, já foi pacífico, pois houve o cuidado de orientar este interesse de modo
a que o platonismo desse lugar, por inteiro, a um substantivo mais concreto.
Telepatia, ou talvez
não.
(Imagem guiadahipnose.com.br)
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