Mais uma crónica deliciosa do Luís dos Santos Veiga, amigo do Liceu que nos deixou há cerca de um mês.
O Liceu e a neve
por Luís dos Santos Veiga
Seriam uns quinze ou
vinte, dos mais inconformados e irreverentes. A ideia surgiu, a mensagem passou
de boca em boca, foram reunidas algumas pás. Seguiram pela periferia, que pelas
ruas da cidade a vigilância policial não aconselhava, antegozando uma vitória
incerta que faria justiça ao que consideravam uma afronta: conforme rezava a
praxe académica, no dia do primeiro nevão de gabarito ou no dia seguinte, se o
nevão ocorresse durante a noite, fazia-se “feriado”. Eles já não eram do tempo
desse velho costume que findara, forçadamente, no início da década de
cinquenta, com severa punição disciplinar dos que se lhe opuseram barricando o
Liceu com neve, mas conheciam-no por relato que passava de curso em curso. Porque
havia de ter sido imposto fim a tal praxe? Uma tal “ordem escolar”, ditada de
cima, sem apelo nem agravo, como se a estudantada não fosse gente, era assim
tão sagrada? Então os estudantes não eram um corpo do Liceu, não tinham uma
palavra a dizer? Menos um dia de aulas, no ano, era assim tão grave? E que mal
vinha ao mundo por um tão simples folguedo? Ná,
não era de gente cristã fazer uma tal afronta à rapaziada! Afinal, aquilo dava
vida à urbe, sempre tão pacóvia, tão parada...
É claro, a proeza que se
propunham tinha os seus riscos, à semelhança do que acontecera uma década
antes, pois a polícia não dormia em serviço, de mais a mais no giro, que o frio
não deixava, podia dar-se conta do acontecimento e lá tinham a esquadra em peso
à perna. E aquele que lhe caísse no gadanho ficava metido numa camisa de onze
varas: a noite no chilindró ainda seria o menos; o pior era ter que se haver
com o processo disciplinar, o cadastro na caderneta escolar, a suspensão de
assistência às aulas com cumulação de faltas que podiam levar ao chumbo, os
anátemas da família que se sentiria envergonhada por ato de tamanha rebeldia.
Mas, que diabo, assim é que não estava certo! As ruas até tinham mais vida com
a estudantada, naquele dia inteiro, a calcorrear a neve, cai aqui levanta-te
além, as bolas de neve em “fogo” cruzado, os rebolos enormes e os bonecos,
quantas vezes verdadeiras estátuas à imaginação e à arte, as gentes da cidade
rendiam-se à alegria esfuziante e à jovialidade dos estudantes e até lhes
perdoavam a tolice de se exporem, rua fora, ao frio cortante, em vez de ficarem
em casa, já que não tinham aulas, sentadinhos à braseira a estudar as lições.
E as pequenas?!
Ensinadas como mandava a boa moral pública a serem recatadas, lá conseguiam
encontrar uma razão que as levasse à rua sem mostrarem afrontamento aos ditames
em que eram educadas: era preciso ir à livraria do Sr. Casimiro ou do Sr.
Felisberto comprar um caderno, ir estudar com uma colega para esclarecer
dúvidas, pedir uns apontamentos, mas ficar em casa todo o dia, isso é que não!
A advertência da mãe ou da patroa da casa onde se hospedara e a quem se
recomendara que a menina não devia pôr o pé em ramo verde, que a família não
era dessas que consentem leviandades, não se fazia esperar: ...mas depressa, menina, volte sem demora, que
está muito frio, pode mesmo apanhar uma gripe, e os rapazes são atrevidos,
atiram neve e até dizem disparates! Elas lá iam, conforme os bons
ensinamentos, de olhos no chão, que só uma doidivanas os levantava para os dos
rapazes — era um suplício para as caras bonitas que se enchiam de certo gozo
íntimo por se sentirem apreciadas e desejadas! O galanteio, um pouco brejeiro
que fosse, soava-lhes aos ouvidos como um hino de anjos celestiais! As bolas de
neve que lhes atiravam? Qual quê? Não era à cara, pois só um ou outro mais
parolo não sabia que, para as meninas, até no atirar bolas de neve se deve ser
gentil, ou então, por infortúnio que se tolerava, uma mão desajeitada não
acertava onde não causasse incómodo! E a malta, essa, rejubilava com o furtivo
olhar de prazer que não se podia reprimir mas breve se escondia, pois a admoestação
seria pesada se alguma boca alcoviteira levasse lá a casa, alterada e
aumentada, a notícia denunciante duma tão grave leviandade...
Embevecidos com tais devaneios,
chegaram ao Castelo e ao Liceu sem darem por isso. Trabalhavam organizadamente.
Montavam sentinela uns, outros barricavam as portas com neve amontoada à pazada
e com rebolos e introduziam neve nas fechaduras; depois, o frio da noite
completaria o trabalho pelo enregelamento. Mandava a estratégia da segurança
começar pelo pesado portão de ferro que dava acesso ao recinto , de muro
gradeado em toda a extensão virada para a cidade, com exceção, ocasional, dum
pequeno carreiro íngreme aberto em resultado de obras que decorriam junto ao
Largo das Freiras, nas traseiras do Liceu; barricado que fosse esse portão, a
atuação da polícia ficava consideravelmente dificultada, pois saltar o muro e o
seu gradeamento não era de todo fácil, o que permitia algum avanço na fuga.
O alarme foi dado, os
bons dos cívicos lá vinham (demasiado cedo, pois ainda faltava barricar uma das
oito portas), qual deles com mais gana de ser o primeiro a deitar as unhas a
algum dos mariolas, o que lhe valeria, certamente, mais um ou dois pontos de
apreço do chefe. Embasbacaram no grande portão de ferro, barricado em primeiro
lugar. Subam para o muro e saltem as
grades, terá ordenado a chefia, e lá se apressaram.
Entretanto a malta já
se pirara para o local previamente escolhido para esconder na neve as pás, que seriam
recolhidas em melhor ocasião — a fuga, com a ferramenta, não será fácil. Os
cívicos, vencido o gradeamento, lá vinham de novo, arrastando consigo o peso
dos capotes, que o frio não era para brincadeiras, os bofes já meio fora da
boca, pois houvera que vencer o muro e as grades e a caminhada desde a esquadra
fora assegurada — ao tempo, o que seriam as novas tecnologias, os meios
motorizados, ainda não faziam parte do seu equipamento.
Por aqui, por ali e
acolá, pisgaram-se. Mas ouviu-se ainda o grito de regozijo dum cívico quando,
caindo num poço de neve que o vento formara ali aonde a raiz de algum pinheiro
fora arrancada, lá encontrou, também caído, um dos fugitivos: um já o tenho, gritou, e a malta
estarreceu; mas logo outro grito contrariou aquele: tens o tanas, e a malta aliviou, pois o prisioneiro desenvencilhara-se
das mãos desajeitadas que não lograram qualquer elogio da chefia — ao
contrário, deixar escapar a presa das mãos há de ter sido motivo de reprimenda.
Esgueirando-se pela
periferia, cada um chegou a sua casa e a polícia ficou a ver navios.
Na manhã seguinte, esse
elementar pormenor não fora esquecido, pois seria denunciante, a malta
levantou-se à hora do costume para comparecer logo à primeira aula, que se
sabia não haveria. O espetáculo tinha a sua graça: os contínuos lá
inspecionaram, uma a uma, as oito portas do Liceu e encontraram a única que a
polícia não dera tempo para barricar; entretanto, o acesso a ela, em
alternativa a uma grande e perturbada volta pela mata e pelo Castelo, só era
possível pelo íngreme carreirinho, escorregadio, pela neve gelada, aberto no
local das obras, junto ao Largo das Freiras. Professores e estudantes lá iam
subindo, tem-te não caias, segurando-se no “corrimão” que os contínuos, de mãos
dadas, formaram. Operação morosa, a bicha dos que aguardavam, sem pressa, diga-se,
alongava-se. Entretanto outros contínuos atarefavam-se, no imediato, a libertar
dos rebolos de neve o portão de ferro que dava acesso ao recinto e a
desobstruir a fechadura da porta principal.
Pela morosidade no
acesso e a irrequietude que tomou os estudantes e eles, naturalmente, não se
esforçaram por dominar, passou o tempo das duas primeiras aulas.
Investiga por aqui,
interroga por ali, que alguns eram conhecidos como mais capazes dum tal
atrevimento, revelou-se a incapacidade de descobrir os meliantes.
Nesse dia, e nos dos
anos seguintes aquando do primeiro nevão de gabarito, a cidade não viu os
estudantes fazerem grandes bonecos de neve, alguns deles podendo ser
verdadeiras estátuas à imaginação e à arte; nem a malta viu, ao contrário do
que antevira, o breve olhar furtivo que denunciava o prazer íntimo das
raparigas escolhidas para alvo das, afinal, simpáticas bolas de neve. Mas a
intocável decisão pedestal de impor fim àquele costume académico tinha sido
beliscada.
Terá sido no ano letivo
de 1959/60 ou 1960/61, no penúltimo reitorado do Liceu.
EXPRESSÃO, outubro 1997
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