Rita
Cruz tem 46 anos, é guardense e vem à BMEL no dia 18 de dezembro, às 16 horas,
lançar NO PAÍS DO SILÊNCIO, o seu primeiro romance, sobre um Portugal "que não deve esquecer o
seu passado". Nesta conversa, fala ao Blogue EXPRESSÃO do que fez surgir este livro, do seu blogue e da sua
vida, entre a família, a fisioterapia e as causas humanitárias. Fala também da sua passagem pela ESAAG.
Há
vários livros num livro, ou pelo menos há-os No País do Silêncio. Várias
estórias, temas, inquietações, que se cruzam ou por lá passam. Mas há um tema
principal nesta obra: o da nossa história recente. No País do Silêncio surge do
receio que tenho do que acontece a um país que esquece o seu passado.
Ficava
bonito se dissesse que sim — e ainda pondero mentir um dia destes! — mas a
verdade é que não o foi. No País do Silêncio não é autobiográfico e pouco tem,
nas estórias que fiz os personagens viver, da minha experiência pessoal ou
familiar. Tem retalhos de um sentir e de um pensar, claro, porque não é
possível o autor não transparecer algures no que escreve, mas não foi a minha
família que me inspirou quando comecei a escrever. Aliás, devo dizer que nem
era suposto os personagens passarem pelas crises académicas. Aconteceu… também
não era suposto haver uma Madalena na estória, mas meteu-se nela. Os
personagens foram ganhando vida própria à medida que escrevia e passaram a não
obedecer necessariamente aos percursos que eu lhes tinha inicialmente criado. O
meu tio foi, isso sim, um dos revisores do livro, porque pela sua experiência
conseguiu assegurar-me que retratava de forma fidedigna o espírito desses
tempos.
Muito agradecida à pequena editora que apostou em mim, a Página a Página. É dificílimo ser editada em Portugal, infelizmente, e as grandes editoras apostam muito mais em traduções e autores estrangeiros do que em dar a conhecer novas vozes nacionais. Porque é um risco para as editoras e porque, infelizmente, se lê pouco — outra das minhas preocupações, que anda lado a lado com o esquecimento do passado, já que a falta de leitura e ignorância são bons companheiros, gostam de passear juntos e de dar as mãos.
Como é o seu blogue?
O
blogue faz parte de uma página que é, num todo, uma partilha de palavras e
experiências. A página é www.ritacruz.org. Sempre escrevi
muito e partilhei longas mensagens com grupos de amigos quando andava a cavalo
das experiências humanitárias — e não só. Vivi na Inglaterra, na Colômbia, no
Afeganistão, no Sri Lanka, na Finlândia, em Moçambique. Mudei-me para a
Austrália, vivo agora na Malásia. Esta instabilidade deu-me sempre muita
matéria prima com que escrever e partilhar. Mas sempre num registo fechado, de
amigos e família. Há poucos anos atrás, pediram-me que escrevesse uma crónica
mensal para a Visão Online, sobre a experiência de vida de uma portuguesa na
Malásia (https://visao.sapo.pt/autores/rita-cruz).
Foi a primeira vez que escrevi regularmente num fórum em que não sabia quem me
estava a ouvir. E gostei muito. Aprendi que, ao não saber quem é o leitor,
tenho menos tolerância com erros, mais cuidado ao vestir as estórias, sou mais
respeitosa do tempo do outro: se não tiver interesse, para quê escrever? A
família e os amigos perdoam mais, estão interessados em tudo o que escrevemos,
mas o leitor desconhecido não. O leitor desconhecido só lê se não estiver a
perder tempo. E aprendi assim a reduzir, a curar, a fazer valer a pena. No
blogue e na página, vou partilhando essas estórias, partilhando o crescimento
enquanto escritora.
Que leituras e autores a formaram como escritora? O que sublinharia?
Sou
uma leitora muito eclética. Na minha adolescência, cresci com Vergílio
Ferreira. Ainda me lembro de ler o Até ao Fim e o sentir o abalo que me deu,
descobrir aquela forma de escrita. Mais recentemente, descobri outros que
escrevem com a batuta do meu sentir. Alice Munro, Nobel da Literatura, o mais
recente. Mas não sei dizer os que me formaram como escritora, porque creio que
será preciso um microscópio para encontrar alguma influência do Vergílio
Ferreira na minha escrita. Creio que tenho as leituras todas amassadas em mim,
do Saramago ao Stephen King, do Eça de Queirós ao George R.R. Martin, do Valter
Hugo Mãe à Margaret Atwood, mas, quando escrevo, o que faço é mergulhar em
personagens que invento e retirar delas a verdade do que sentem, até que me perturbem
como se fossem reais.
Foi
uma juventude, como todas, feita de descobertas. Da amizade, da leitura, do
amor, dos primeiros desgostos, dos primeiros deslumbres. Tenho um imenso
carinho pela minha cidade e pela Escola. Tive professores excelentes, dos quais
destaco o Virgílio Bento, que nos retirou a todos de um certo estupor. Chegámos
a ter a sala organizada numa meia lua, em vez de sentados uns atrás dos outros.
Ele andava pela sala, no centro daquela lua, com o seu ar de filósofo, e
convidava-nos a pensar. Não sei se pensávamos muito, ou adequadamente, mas
aquela disposição da sala assim ficou-me como uma referência de que podemos
tentar coisas novas, não estagnar, não ficar sempre igual, não parar de pensar,
arriscar e ver.
Vem à Guarda regularmente ou nem por isso?
Sim.
Vivo na Malásia agora, antes vivi na Austrália. Só tenho vindo uma vez por ano
a Portugal, e sempre à Guarda. É provável que agora venha com mais
regularidade, porque decidimos que os nossos filhos, de 8 e 9 anos neste
momento, beneficiem de uma temporada maior em Portugal, pelo que, em setembro do
ano que vem, regressamos para que façam o primeiro período escolar aqui.
Estudei
Relações Internacionais em Braga, fiz um mestrado em Estudos da Paz, na
Universidade de Bradford, e depois, aos 30 anos, achei que afinal não era nada
disso que queria fazer e fui estudar Fisioterapia no Alcoitão. Na Malásia, onde
estou a acompanhar o meu marido, trabalho como fisioterapeuta, em regime de
voluntariado com refugiados.
Estou
sempre ocupada. A maior ocupação é ser mãe, e o tudo o resto acaba por se meter
nos intervalos, mas sou perita em encontrá-los, que a vida é breve e a vida é
só uma e eu tenho interesses a transbordar das paredes. Agora ando a aprender coreano.
Vou-me meter a aprender piano, no regresso à Malásia. Se não estou a aprender
alguma coisa, não estou bem. Sou como o meu avô que, meio surdo, se meteu a
aprender a tocar viola aos 81 anos. Também devo ser como ele, que depois nunca
veio a tocar nada de jeito, mas não é verdade que o que interessa não é só o
destino, mas o caminho?
Em
relação aos projetos humanitários, eles formaram-me. Não seria a pessoa que sou
sem os ter feito, nem poderia, creio, escrever o No País do Silêncio.
Faltava-me a experiência, a palpitar no sangue, do que é a privação da
liberdade. Sou filha de Abril, não vivi a ditadura. A primeira vez que a vi, a
liberdade amputada e o medo associado, foi na Colômbia, e nunca mais esqueci. A
ajuda humanitária é, em muitos aspetos, um circo e uma fantochada — e por isso
acabei por tirar outro curso aos 30 anos — tenho muitas críticas e muita coisa
a dizer sobre ela, mas a verdade é que, no melhor e no pior, formou-me. Um dia
falamos sobre isto, mas não aqui. Aqui, quero dizer apenas que continuo a
trabalhar com refugiados e tenho a certeza que no futuro hei de voltar a fazer
uma missão. Eu e o meu companheiro, que também foi companheiro já desses projetos.
Quando os miúdos crescerem e o Roger disser que é tempo de reforma, voltamos a
dar o corpo às causas. Havemos de andar por aí de bengala, a percorrer os
caminhos da liberdade e da justiça.
A apresentação, que vai decorrer às 4 horas da tarde do dia 18 de dezembro na Biblioteca Eduardo Lourenço, vai estar a cargo da primeira pessoa fora do circuito familiar que leu a obra e se encantou com ela, o professor Augusto Monteiro. É um senhor da escrita, que sabe pontuar tudo com bom humor. Vai ser engraçado ouvi-lo, e vai ser a última apresentação da obra, antes do meu regresso para a Malásia. Tenho a certeza de que vai valer a pena e gostava muito de ouvir o que a geração mais nova tem para me dizer. Porque, na verdade, foi a pensar neles e nelas que o livro foi escrito.
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