Vergílio Ferreira, estudante do Liceu Nacional da Guarda na década de 30 do século XX, começa a escrever
dentro do mundo neorrealista de denúncia social (O caminho fica longe e Vagão
J, por exemplo) mas pouco se demora por aí e com Mudança começa a inflexão para
uma escrita própria, psicologista e existencialista, realizada em obras como
Aparição e Cântico Final. Ao lado da sua produção ficcional, Vergílio Ferreira (VF) distingue-se como pensador e ensaísta. Para além de muitos ensaios, a sua
produção diarística atinge o leitor no cerne da literatura: fazer pensar.
Depois de vários volumes de Conta-Corrente e de Pensar, o livro que
aconselhamos hoje é Escrever, manuscrito de reflexões variadas que só postumamente se publicaria. No
rascunho estava primeiro o título Pensar II mas mais tarde VF mudou-o para Escrever.
Aqui fica um excerto para apanharem o tom. É sobre escrever cartas.
“29. Escrever cartas. Está hoje
fora de moda como tudo. Porque tudo agora é velocidade, ser-se por fora, usar e
deitar ao lixo. Não se escrevem cartas — telefona-se. Não se usa o interior,
usa-se a pele. Lê-se pouco o livro, basta a TV, que é um dom divino para o
analfabetismo. O telefone dá despacho rápido ao que se comunicava por carta. E é
mais caro, que é a vantagem de tudo o que tem preço alto, que é ter preço menos
comunitário. A carta. Era do tempo de um viver sossegado, de se percorrer a
intimidade de nós e de se estar aí bem. Havia a agitação do que nos agitasse,
mas dizê-lo remansamente reconduzia ao sossego. Era do tempo de ter problemas
para os desdobrar em escrita e de se ficar aí mais planificado. Era o tempo de
conversar e não de atropelar palavras no momentâneo aturdimento. Era o tempo de
se ter alma e não o seu contraplacado. Era o tempo de se terem ideias e não
bocados de cortiça. O tempo do silêncio e não dos gritos das massas. O tempo de
se estar só e não dos encontrões de se estar em companhia. A carta. Memória
antiquíssima a descobrir talvez um dia como os manuscritos do Mar Morto.”
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