domingo, 22 de março de 2020

LEITURAS CONTRA A CRISE (9) Escrever, de Vergílio Ferreira




Vergílio Ferreira, estudante do Liceu Nacional da Guarda na década de 30 do século XX, começa a escrever dentro do mundo neorrealista de denúncia social (O caminho fica longe e Vagão J, por exemplo) mas pouco se demora por aí e com Mudança começa a inflexão para uma escrita própria, psicologista e existencialista, realizada em obras como Aparição e Cântico Final. Ao lado da sua produção ficcional, Vergílio Ferreira (VF) distingue-se como pensador e ensaísta. Para além de muitos ensaios, a sua produção diarística atinge o leitor no cerne da literatura: fazer pensar. Depois de vários volumes de Conta-Corrente e de Pensar, o livro que aconselhamos hoje é Escrever, manuscrito de reflexões variadas que só postumamente se publicaria. No rascunho estava primeiro o título Pensar II mas mais tarde VF mudou-o para Escrever. Aqui fica um excerto para apanharem o tom. É sobre escrever cartas.
“29. Escrever cartas. Está hoje fora de moda como tudo. Porque tudo agora é velocidade, ser-se por fora, usar e deitar ao lixo. Não se escrevem cartas — telefona-se. Não se usa o interior, usa-se a pele. Lê-se pouco o livro, basta a TV, que é um dom divino para o analfabetismo. O telefone dá despacho rápido ao que se comunicava por carta. E é mais caro, que é a vantagem de tudo o que tem preço alto, que é ter preço menos comunitário. A carta. Era do tempo de um viver sossegado, de se percorrer a intimidade de nós e de se estar aí bem. Havia a agitação do que nos agitasse, mas dizê-lo remansamente reconduzia ao sossego. Era do tempo de ter problemas para os desdobrar em escrita e de se ficar aí mais planificado. Era o tempo de conversar e não de atropelar palavras no momentâneo aturdimento. Era o tempo de se ter alma e não o seu contraplacado. Era o tempo de se terem ideias e não bocados de cortiça. O tempo do silêncio e não dos gritos das massas. O tempo de se estar só e não dos encontrões de se estar em companhia. A carta. Memória antiquíssima a descobrir talvez um dia como os manuscritos do Mar Morto.”

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