Entra
um Ex-Primeiro-Ministro. Usa fato e gravata. Traz uma mala de executivo numa
mão e vários exemplares de um livro debaixo do braço. Na outra mão, um
telemóvel.
Para
junto à Barca do Inferno…
Ex-Primeiro-Ministro
– O que é que faço aqui? Onde estou e quem és tu?
Diabo
–
Eu sou o dono da Barca parra onde vais, que ali Aquele (aponta para o Anjo)
não te quer.
Ex-Primeiro-Ministro
– (mostrando arrogância) Não me vai querer!!Vamos ver isso!!!...
O
Ex-Primeiro-Ministro vai até à Barca do Anjo. Este recebe-o com três pedras na
mão…
Anjo
– O
que é que pensas que estás aqui a fazer? Deves estar a ver mal, só pode! Aqui
não entras de certeza!
Ex-Primeiro-Ministro
– Mas porquê? Eu construí tantos prédios para melhorar as condições da
população! Aumentei o salário mínimo! Fiz obras em tantas escolas…
Parvo
–
E os milhões que meteste ao bolso? Então, ficaste sem fala? Olha que as
verdades vêm sempre ao de cima!
Anjo
– É,
tudo o que fizeste está envolto em contradições e polémicas reais e isso basta
para que não entres aqui.
Ex-Primeiro-Ministro
– Mas quais milhões? Eu vivia bem, sim, mas porque tinha um grande amigo que me
dava, desculpe, emprestava o dinheiro e porque a minha mãe, ainda por cima,
recebeu uma herança de cinco milhões de euros.
Parvo
– Ai!
Como eu gostava de ter tido amigos assim, tão riquinhos!!!
Ex-Primeiro-Ministro
– Para além do mais, eu ia sempre à missa, rezava e dava esmolas a muita gente!
Parvo
–
Sim, sim, e quanto mais rezavas, mais roubavas! Era o melhor que sabias fazer!
Anjo
– E
como é que ficaram os processos contra ti em tribunal? Morreste antes de teres
a resposta, não foi? Pois eu sei qual seria: a condenação! E acredita que a
condenação terrena era melhor do que esta condenação que tens, agora, ao Batel
infernal!
Ex-Primeiro-Ministro
– Mas eu sempre fui honesto (engasga-se) e sempre fiz tudo pelo povo que
governei. Eles é que foram uns mal-agradecidos, que não souberam ver todo o bem
que fiz e me acusaram, injustamente, de tantos crimes!
Anjo
– E
o que é que trazes debaixo do braço?
Ex-Primeiro
Ministro – São livros, Anjo, são livros.
Parvo
– Agora
quase parecias a Rainha Santa Isabel: “São rosas, Senhor, são rosas”!
Realmente, um dia qualquer, canonizam-te…
Ex-Primeiro-Ministro
– Cale-se, seu parvo, que a conversa ainda não chegou aí: se quer falar comigo,
faça o favor de marcar uma audiência. E já lhe digo que vou estar demasiado
ocupado para o receber!
Parvo
– E
eu lá queria uma audiência? Ainda apanhava algum vírus na cadeira e voltava-me
a caganeira!!!… Nã, nã, nã…
Ex-Primeiro
Ministro – (voltando a dirigir-se ao Anjo) Sr. Anjo,
estes livros são exemplares do que que eu escrevi e publiquei. Venderam-se
todos, exceto estes que aqui trago para oferecer a quem queira cultivar-se um
pouco mais.
Parvo
– (interrompendo-o)
Esses e todos os que tens na garagem do teu avô! Compraste-os todos, não foi?
Para pareceres um escritor de primeira… de primeira… de primeira merda… Esse
livro parece um conto de fadas. E tu deves ser o príncipe!!!…
Ex-Primeiro-Ministro
– (continuando como se nada fosse) Olhe que é um livro muito bom, muito
bem escrito! Aproveite, leia um bocadinho e vai ver que não consegue parar.
Além disso, este livro prova que sempre fui boa pessoa, que fiz muito pelo meu
país…
Parvo
– (interrompendo-o)
… e pelo teu bolso!
Ex-Primeiro-Ministro
– (continuando como se nada fosse) … e que fui muito injustiçado pelos
meus compatriotas!!!
Anjo
– Não
me convences da tua inocência, como não convenceste ninguém em vida. Esta Barca
não é para ti: não fizeste ações dignas de aqui entrares. Vai ter ali com aquele
(apontando para o Diabo), que tem muito espaço para te levar.
Ex-Primeiro-Ministro
– Sempre me disseram que sou muito bem-falante e que consigo convencer toda a
gente do que quero: o que é que posso dizer para o convencer desta minha
verdade?
Anjo
– Nada!
Mesmo nada! Vai ter com aquele que tem espaço para ti, para a tua pasta e para
os teus valiosos livros: pode ser que encontres quem os queira ler e a quem os
possas oferecer.
Enquanto
o Ex-Primeiro Ministro se dirige para a Barca infernal, o Diabo, que ouvia a
conversa, intervém:
Diabo
–
Não quero ver essa porcaria de livro! Mas podes levar os exemplares que aí
trazes: nesta minha Barca, cabe toda a mentira, toda a deslealdade, toda a
intrujice. Por isso, também cabem os teus livros.
Anjo
– Pela
primeira vez nas nossas longas vidas, concordo!
Ex-Primeiro-Ministro
– Mas… É o melhor livro do mercado!!! Tenho a certeza de que alguém o vai
querer ler. Quem mais é que já entrou nessa Barca? Pode ser que o consiga
impingir a alguém…
Parvo
– (aos
saltinhos e a rir-se) Experimenta o Mecânico: pode ser que ele esteja
interessado na trampa do teu livro. Até porque é um homem que gosta muito de
ler… os calendários na parede!!!... Ah! Ah! Ah!
Ex-Primeiro-Ministro
– Que triste fado o meu: incompreendido em vida e condenado na morte!
Diabo
–
Cala-te e entra na Barca: temos muito caminho pela frente! Prepara-te para
remar: (com ironia) como fazias jogging todos os dias, deves estar em
boa forma!!!...
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