quarta-feira, 13 de maio de 2020

AUTO DA BARCA DO INFERNO VERSÃO 2.0 (7) A cena 6


                     AUTO DA BARCA DO INFERNO
VERSÃO 2.0
(pelos alunos do 9º E)
CENA 6 - PRESIDENTE DE UMA MULTINACIONAL


Entra o Presidente da multinacional ANDACÁ.COME. Usa sapatos e fato italiano, colete e gravata e traz o volante de um carro topo de gama na mão direita, uma pasta de executivo e um telemóvel de última geração na mão esquerda. Dentro do bolso do casaco, nota-se que traz uma grande carteira, bem recheada.
Quando entra, o Diabo dirige-se-lhe, com ar de gozo:
Diabo – Vejam quem é ele!!!
Presidente – O que é que aconteceu? 
Diabo – Não te lembras?
Parvo – Bateste com a cabeça no penico!!!
Presidente – Não me lembro de muito. Só que ia com o meu Ferrari a 200 km/h, na autoestrada, quando me despistei e fui contra o raile.  
Parvo – É no que dá ires ao telemóvel com a amante!!!
Diabo – Caro Presidente, foi isso mesmo que aconteceu. Entre, entre nesta minha humilde Barca: não tem as condições a que Vossa Excelência está habituado, mas serve perfeitamente para a sua viagem.
Presidente – Como não tem as condições? Eu só viajo em primeira classe, seja de carro, de avião ou de barco!!!… Recuso-me a viajar em classe económica! Mas, afinal, para onde é que vai esta Barca?
Diabo – Vai para o quentinho do Inferno! E Vossa Excelência tem lá o seu escritório montado, com todas as comodidades.
Presidente – Nem pensar! Um grande Presidente como eu tem que ter lugar no Céu!
Parvo – (aparte, revirando os olhos) Coitadinho! Como é presumido, o figurão! Olha lá, não te lembras do que fizeste na tua “graaannnde empresa”?
Presidente – Claro que me lembro, ó imbecil! Mesmo que não tenhas nada a ver com isso, vou-te responder: dei emprego a muita gente, fiz grandes promoções nos meus hipermercados… 
Diabo – (Muda a forma de tratamento, já irritado com as desculpas do Presidente) Isso é verdade. Mas quanto é que ganhaste com isso?
Presidente – Claro que ganhei muito dinheiro. Tanto que o espalhei por contas em vários paraísos fiscais. Mas o objetivo dos empresários de sucesso não é ganhar dinheiro? Foi isso que fiz: consegui uma boa vida para mim e para os meus!
Diabo – Claro: para ti, para os teus e para as tuas… “amigas coloridas”, não foi?
Presidente – E um homem não pode ir variando? Achas que, podendo comer pratos diferentes todos os meses, ia querer sempre o mesmo? Mas a minha mulher sabia e nunca se queixou: ela também gostava da boa vida que eu lhe dava!
Parvo – Gostava tanto que também variava os pratos que comia!!!
Presidente – (virando-se para o Parvo) O quê? Como te atreves, ó parvalhão? (o Parvo revira os olhos e dá um salto para trás, com medo) A minha mulher sempre me foi fiel!
Diabo – Achavas tu! Mas fartou-se de rir depois de saber da tua morte! Chorou lágrimas de crocodilo no teu funeral! E apoiou-se muito naquele que lhe proporcionava uma boa “forma física”!
Presidente – Não é possível! Não acredito! Posso-lhe fazer uma videochamada para veres como ela está chorosa, destroçada, desgraçada…
Parvo – Desgraçadamente feliz, nos braços do seu personal trainer
Diabo – Não precisas da videochamada: eu próprio, que vejo tudo o que se passa lá em baixo, to garanto. Olha que ela é mesmo uma boa atriz: ninguém diria, no teu funeral, que não estava muito infeliz. Mas o teu contabilista e a tua seguradora já andam às voltas com o dinheiro que espalhaste e que ela há de gozar!
Presidente – Como posso ter andado tão enganado? Mas, fiel ou não à minha mulher, fui uma boa pessoa e um grande empresário.
Diabo – Claro, muito grande! E como todos os grandes, fugiste ao fisco, pagaste pouco aos fornecedores, exploraste os teus funcionários, trataste-os mal, não foi, meu irmão?
Presidente (exaltado) – Nunca! Nunca os tratei mal! Sempre lhes paguei a tempo e sempre gozaram férias!
Diabo – Claro, mas nunca te preocupaste com as suas famílias. Obrigava-los a trabalhar mais do que o devido e nunca pagaste horas extraordinárias. Até eles ficaram contentes com a tua morte!
Presidente – Podes até ter razão, mas como eu posso pagar o bilhete na outra Barca, vou até lá: tenho a certeza de que não me vão recusar a entrada.
Diabo – Vai, vai, que logo voltas!
Dirige-se o Presidente para a Barca da Glória e diz:
Presidente – Ó da Barca! Posso entrar?
Anjo – Não, aqui não entrarás. Vai para a Barca do teu irmão, aquele com quem estavas, agora mesmo, à conversa: terão muitos interesses em comum. Lá, é o teu lugar!
Presidente – Mas eu quero ir para o Paraíso!
Anjo – Só entra nesta Barca quem fez o bem.
Presidente – E eu não fiz? Pobre de mim: reconhecido na Terra, ignorado no Céu!
Anjo – Só entra nesta Barca quem tem muito amor e é nobre do coração.
Presidente – E eu não sou? Olhe, posso ver se tenho aqui dinheiro suficiente. E, se não tiver, pode sempre aceitar ações da minha empresa: valem muito dinheiro!!! Quero pagar a viagem em primeira classe: não me contento com menos!
Anjo – Esta viagem não tem preço aqui: paga-se em vida, durante a vida. E tu não o fizeste. Não to disse já o teu irmão? Tu és aquele que fugiu ao fisco, que escondeu dinheiro por todo o lado, que explorou os empregados e que roubou os clientes.
Presidente – Mas nem as esmolas que dei, nem a solidariedade que exerci, nada me vale agora?
Parvo – Solidariedade? Qual? Só davas porque podias meter isso no IRS! Nunca fizeste nada pelos outros: apenas por ti próprio!
Anjo – A solidariedade faz-se anonimamente, não precisa de câmaras de televisão atrás, nem de grandes conferências de imprensa!
Presidente – Mas eu ajudei muitos conhecidos, arranjei-lhes bons empregos!
Parvo – Pois, à troca de milhões!
Presidente – O que é que eu fiz!!! Estou condenado ao Batel Infernal!!!
O Presidente volta à Barca do Diabo.
Diabo – Entre! (fazendo uma vénia, sorriso irónico nos lábios) Entre, senhor Presidente, seja muito bem-vindo! Sente-se ali, junto aos remos que lhe guardei. Para o Inferno o vou levar. E lá vai-me ajudar a ganhar mais dinheiro… e a convencer outros a seguirem os seus passos!
Presidente – (hesitante e cabisbaixo, ombros encolhidos) Pobre de mim! Agora é que o meu jogging mudou de figura: passo das corridas para o remo! Que tristeza! Que desconsolo! Que desilusão!
Diabo – Não receie, meu caro: no Inferno encontrará muitos amigos. Agora, entre sem mais demoras. Para a beira do Satanás vai conversar.
E lá entra o Presidente na Barca do Diabo, rumo ao Inferno.  

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