Durante algumas semanas publicaremos aqui as crónicas de Luís dos Santos Veiga ("Histórias dos anos 60") no jornal EXPRESSÃO de 1997 e 1998. Nestas crónicas Luís dos Santos Veiga recorda as tropelias e aventuras dos estudantes na Guarda dos anos 60.
O polícia, as galinhas e os piolhos
por Luís dos Santos Veiga
Nos anos 60, as tascas
da Guarda, como as de outras terras, desempenhavam uma função social
importante: nelas se comia, bebia, cavaqueava, desabafava das agruras da vida e não raro se acertavam negócios. Lá
se encontravam os da terra e os das alheias, que vinham por causa da feira ou
pagar a décima, resolver uma herança, consultar o doutor porque alguma mazela
não curava ou constituir defensor para uma querela de águas ou outra rixa entre
vizinhos.
Clientela certa, os
polícias não faltavam, mesmo não havendo formatura nem chamada. Aquela ali, no
Largo dos Correios, ficava a um saltinho da esquadra e, cumprido o quarto de
vigia, lá encostavam a barriguinha ao balcão, rodada bebida rodada pedida, que
não seria bom cristão nem bom camarada aquele que não pagasse a sua. Molhavam
bem a palavra, desatavam a língua, falavam das coisas de serviço, da vida
alheia e da sua.
Os estudantes, por seu
lado, tinham também a sua ocasião de lazer, e um copo, quantas vezes, vinha a
calhar. Numa qualquer tarde um pequeno grupo deles estava nesta taberna, que
era o sustento da família de um deles e onde os outros eram tidos como se
filhos fossem, lá dentro, no reservado. Divertiam-se, naquela ocasião, com coisas
tão comezinhas como “classificar” as colegas, à semelhança do que os
professores faziam nas disciplinas curriculares e também numa escala de zero a
vinte, quanto a intelecto que se revelasse, simpatia que cativasse, riqueza que
se soubesse, físico que se mostrasse (agora dir-se-ia 80-60-80 ou coisa
parecida) e boniteza de cara que se visse. Nas últimas três “disciplinas”,
diga-se, havia muitas notas altas (até mesmo vintes!); quanto à segunda, a
fartura já não se via e apenas uma ou outra nota boa era merecida e as
negativas abundavam; mas a miséria maior respeitava à primeira – mesmo com
benevolência, a escala até zero chegava a rebentar e era preciso recorrer a
padrões de comparação como o gato, a galinha, a minhoca! Inofensivas vinganças
de quem não alcançava favores – estão verdes… diria a raposa matreira.
Nessa tal tarde, e
enquanto os estudantes se ocupavam naquele divertimento, junto ao balcão um
magote de polícias conversava a esmo e fazia ouvir o chio da torneira do pipo
enquanto o reflexo de Pavlov despertava as glândulas salivares. A conversa
mudou de todo quando, concluíram os estudantes, entrou mais um polícia: então
não querem lá saber, os almas do diabo foram-me ao galinheiro! – disse o que
acabara de entrar, desacoroçoado de todo. E quando, e quantos eram, e quantas
pitas levaram? – todos perguntaram à uma, interrompendo abruptamente a golada,
de tal sorte que um se engasgou e lhe sobreveio um acesso de tosse que foram
precisas umas boas palmadas nas costas porque alguma pinga lhe foi parar ao
goto. E o caso não era para menos, pois, perante uma revelação destas, até às
paredes espevitaram o ouvido, quanto mais os que estavam por trás delas, e
ouviram os comentários que não se fizeram esperar, tal a ânsia de desabafar
contra tamanho desaforo, que até era um insulto à autoridade! Foi esta noite,
quantos não sei, mas levaram seis pitas, metade de quantas a patroa lá tinha;
andámos nós, eu e ela, a tratar dos bichos, que os trazíamos luzidios, quatro
delas eram boas poedeiras que não se passava um dia sem as ouvirmos cantar
depois de porem o ovinho!
Aquele polícia, como
muitos outros, conhecia os estudantes e bem assim onde morava mais as suas
galinhas; agora, e deste modo, ficavam a saber da capacidade analítica e
conclusiva do homem e também da sua estratégia para tirar desforra.; aquilo,
por lá algum cão ladrou – continuava ele – tiveram medo que se desse conta,
trataram de fugir e não puderam levá-las todas, que faziam uma dúzia bem
contada; não ficarão sem lá voltar pelas outras, mas encontram-se ao engano que
estes dias hei de dormir lá com esta companheira (é de imaginar que, ao dizer
assim, acariciou o coldre pendente do cinturão da farda). E bem mereciam um
balázio, que coisa assim não se faz! logo atalhou outro em apoio do camarada
esbulhado, mas sempre foi aconselhando: vê lá o que fazes, não vás estragar a
vidinha! Ná, qual quê – retorquiu o nosso homem, a pistola é só para os
acagaçar e poder deitar a unha a algum; depois, esse há de piar os nomes dos
outros e pagam-mas bem pagas, que, cá do filho do meu pai, ainda está para
nascer o primeiro que se fique a rir!
Naquele fim de tarde já
chegaria de copos, a língua começava a entaramelar-se encavalitando as palavras
– taberneiro que se prezasse não servia tinto carregado apenas na cor – as
patroas e os filhos na casa à espera para o jantarinho, cada um pagou a rodada
pedida e foram andando, que se fazia tarde.
Os estudantes trocaram
entre si um olhar conspirativo, a mesma ideia tinha saltado à mente de todos:
aquela cena tinha que ter um final digno! De facto a partida pregada ao cívico,
seguida como fora daquele queixume e da revelação de tão magna estratégia que
nem o melhor general saberia conceder, em lugar público, que as tabernas eram
autênticos lugares públicos, seria obra inacabada e desilustradora da “arte de
bem galinhar” se o desfecho ficasse por ali; impunha-se, pois, galardoar o ato
verdadeiramente heroico que o valente cívico se propunha, de dormir na
capoeira, tanto mais que, com tal cometimento, enriquecia a língua pátria ao acrescentar
um novo significado à expressão idiomática “deitar-se com as galinhas”.
Por aquelas noites o
galinheiro estava fora de alcance. Mas engendraram maneira de não perderem o
seguimento e gizaram a estratégia para o
golpe final. Três ou quatro dias depois souberam que, não tendo os gajos
voltado pelas outras pitas, o sacrificado polícia também já não ia dormir na
capoeira, pois andava cheiinho de piolhos, com uma coceira que só visto.
Concluíra ele que os malandrins só quiseram mesmo levar as que tinham
surripiado, lá tinham feito a borga à sua custa, os safados. Mas que gostava de
lhes ser bom, se pudesse, ai isso gostava! De mais a mais a patroa andava
chorosa com pena dos animais que tinham ido parar só Deus sabia a que
bandulhos! Grande era o desgosto do homem que, em troca das pitinhas, ficara com
os piolhos e passara mal as noites, pois, num galinheiro fedorento e piolhoso
nem um moiro conseguiria dormir, quanto mais um cristão e, para cúmulo,
polícia! E tudo em vão, sem proveito, que as pitinhas já tinham ido, e sem
glória, pois gabara-se por toda a esquadra que havia de deitar a mão a um só
que fosse dos gabirus...
Na primeira noite
dormida sem piolhos, com o sono reconfortante pesado, que o das anteriores
estava em falta, as restantes pitinhas levaram caminho. Ironia do destino,
talvez...
EXPRESSÃO, dezembro 1997
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