O meu Nobel da literatura
“Nasci” tarde para os livros. Na
adolescência, os livros eram amontoados de folhas, enormes, com centenas de
páginas. Qualquer tentativa de iniciar uma leitura esbarrava na tarefa hercúlea
de digerir o significado de milhares de frases atribuídas a personagens ou a
dissertações dos autores. A minha progressão media-se em “número de páginas” e,
na generalidade terminava ao fim de umas breves dezenas. A leitura de livros
era algo que não me atraía mesmo nada e ficaria a aguardar por melhores dias.
Já em adulto, num areal sesimbrense,
despertei para este gosto com o livro de Dan Brown – “O Código Da Vinci”. De
repente as páginas voavam à medida que ia avançando na trama. Parece que o
segredo está em encontrar um livro que nos prenda da primeira à última página. Nasceu
um leitor.
Saramago era, para mim, um escritor
esquisito. Diziam que não usava pontuação e que a sua prosa era compacta, sem
pausas. Mas para ter sido laureado com um Nobel é porque tinha o seu valor
reconhecido pela Academia Sueca. Atrevi-me e não me arrependi.
Ler Saramago foi uma viagem pelo
imaginário de um autor sem barreiras religiosas ou políticas. Identifiquei-me
com o seu ateísmo militante e com a sua capacidade de quebrar e brincar com os
dogmas da igreja católica. “Caim”, o seu livro “maldito” foi uma delícia.
Segundo a Bíblia, Caim e Abel simbolizam a disputa de irmãos pela primazia,
pelo amor do Pai. É o amor de Deus que ambos tentam conquistar. É exatamente
esta disputa que Saramago considera reprovável e geradora de conflitos entre o
Homem. Gerou guerras, ditas, santas e perseguição. Um deus criado pelos homens
e para os homens, descarta o ser humano como responsável pelos seus atos, uma
vez que as suas ações, por mais reprováveis que sejam, são feitas em nome de
uma entidade superior. Que pai, no seu são juízo, mataria um filho para provar
a sua devoção a um suposto deus? É este o cerne da reflexão do autor, com base
na estória bíblica, que está cheia de mordazes apontamentos humorísticos. Esta
obra maldita de Saramago foi, para mim e para muitos, um regalo, mas poderia
ter-lhe posto a cabeça a prémio se os cristãos não fossem muitíssimo mais
moderados que os muçulmanos no que diz respeito às críticas dos homens, sãos e
livres. Que o diga Salman Rushdie.
(José Carlos Lopes, prof. de Biologia e Geologia)
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