quarta-feira, 22 de março de 2017

O MEU NOBEL - 3 José Carlos Lopes escolhe Saramago



O meu Nobel da literatura

“Nasci” tarde para os livros. Na adolescência, os livros eram amontoados de folhas, enormes, com centenas de páginas. Qualquer tentativa de iniciar uma leitura esbarrava na tarefa hercúlea de digerir o significado de milhares de frases atribuídas a personagens ou a dissertações dos autores. A minha progressão media-se em “número de páginas” e, na generalidade terminava ao fim de umas breves dezenas. A leitura de livros era algo que não me atraía mesmo nada e ficaria a aguardar por melhores dias.

Já em adulto, num areal sesimbrense, despertei para este gosto com o livro de Dan Brown – “O Código Da Vinci”. De repente as páginas voavam à medida que ia avançando na trama. Parece que o segredo está em encontrar um livro que nos prenda da primeira à última página. Nasceu um leitor.

Saramago era, para mim, um escritor esquisito. Diziam que não usava pontuação e que a sua prosa era compacta, sem pausas. Mas para ter sido laureado com um Nobel é porque tinha o seu valor reconhecido pela Academia Sueca. Atrevi-me e não me arrependi.

Ler Saramago foi uma viagem pelo imaginário de um autor sem barreiras religiosas ou políticas. Identifiquei-me com o seu ateísmo militante e com a sua capacidade de quebrar e brincar com os dogmas da igreja católica. “Caim”, o seu livro “maldito” foi uma delícia. Segundo a Bíblia, Caim e Abel simbolizam a disputa de irmãos pela primazia, pelo amor do Pai. É o amor de Deus que ambos tentam conquistar. É exatamente esta disputa que Saramago considera reprovável e geradora de conflitos entre o Homem. Gerou guerras, ditas, santas e perseguição. Um deus criado pelos homens e para os homens, descarta o ser humano como responsável pelos seus atos, uma vez que as suas ações, por mais reprováveis que sejam, são feitas em nome de uma entidade superior. Que pai, no seu são juízo, mataria um filho para provar a sua devoção a um suposto deus? É este o cerne da reflexão do autor, com base na estória bíblica, que está cheia de mordazes apontamentos humorísticos. Esta obra maldita de Saramago foi, para mim e para muitos, um regalo, mas poderia ter-lhe posto a cabeça a prémio se os cristãos não fossem muitíssimo mais moderados que os muçulmanos no que diz respeito às críticas dos homens, sãos e livres. Que o diga Salman Rushdie.
(José Carlos Lopes, prof. de Biologia e Geologia)

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