domingo, 17 de janeiro de 2021

AS CRÓNICAS DE LUÍS DOS SANTOS VEIGA (1) Memórias dos anos 60 do ex-aluno do Liceu da Guarda recém-falecido

Durante algumas semanas publicaremos aqui as crónicas de Luís dos Santos Veiga ("Histórias dos anos 60") no jornal EXPRESSÃO de 1997 e 1998. Nestas crónicas Luís dos Santos Veiga recorda as tropelias e aventuras dos estudantes na Guarda dos anos 60. 

O polícia, as galinhas e os piolhos

por Luís dos Santos Veiga

 

Nos anos 60, as tascas da Guarda, como as de outras terras, desempenhavam uma função social importante: nelas se comia, bebia, cavaqueava, desabafava das agruras  da vida e não raro se acertavam negócios. Lá se encontravam os da terra e os das alheias, que vinham por causa da feira ou pagar a décima, resolver uma herança, consultar o doutor porque alguma mazela não curava ou constituir defensor para uma querela de águas ou outra rixa entre vizinhos.

Clientela certa, os polícias não faltavam, mesmo não havendo formatura nem chamada. Aquela ali, no Largo dos Correios, ficava a um saltinho da esquadra e, cumprido o quarto de vigia, lá encostavam a barriguinha ao balcão, rodada bebida rodada pedida, que não seria bom cristão nem bom camarada aquele que não pagasse a sua. Molhavam bem a palavra, desatavam a língua, falavam das coisas de serviço, da vida alheia e da sua.

Os estudantes, por seu lado, tinham também a sua ocasião de lazer, e um copo, quantas vezes, vinha a calhar. Numa qualquer tarde um pequeno grupo deles estava nesta taberna, que era o sustento da família de um deles e onde os outros eram tidos como se filhos fossem, lá dentro, no reservado. Divertiam-se, naquela ocasião, com coisas tão comezinhas como “classificar” as colegas, à semelhança do que os professores faziam nas disciplinas curriculares e também numa escala de zero a vinte, quanto a intelecto que se revelasse, simpatia que cativasse, riqueza que se soubesse, físico que se mostrasse (agora dir-se-ia 80-60-80 ou coisa parecida) e boniteza de cara que se visse. Nas últimas três “disciplinas”, diga-se, havia muitas notas altas (até mesmo vintes!); quanto à segunda, a fartura já não se via e apenas uma ou outra nota boa era merecida e as negativas abundavam; mas a miséria maior respeitava à primeira – mesmo com benevolência, a escala até zero chegava a rebentar e era preciso recorrer a padrões de comparação como o gato, a galinha, a minhoca! Inofensivas vinganças de quem não alcançava favores – estão verdes… diria a raposa matreira.

Nessa tal tarde, e enquanto os estudantes se ocupavam naquele divertimento, junto ao balcão um magote de polícias conversava a esmo e fazia ouvir o chio da torneira do pipo enquanto o reflexo de Pavlov despertava as glândulas salivares. A conversa mudou de todo quando, concluíram os estudantes, entrou mais um polícia: então não querem lá saber, os almas do diabo foram-me ao galinheiro! – disse o que acabara de entrar, desacoroçoado de todo. E quando, e quantos eram, e quantas pitas levaram? – todos perguntaram à uma, interrompendo abruptamente a golada, de tal sorte que um se engasgou e lhe sobreveio um acesso de tosse que foram precisas umas boas palmadas nas costas porque alguma pinga lhe foi parar ao goto. E o caso não era para menos, pois, perante uma revelação destas, até às paredes espevitaram o ouvido, quanto mais os que estavam por trás delas, e ouviram os comentários que não se fizeram esperar, tal a ânsia de desabafar contra tamanho desaforo, que até era um insulto à autoridade! Foi esta noite, quantos não sei, mas levaram seis pitas, metade de quantas a patroa lá tinha; andámos nós, eu e ela, a tratar dos bichos, que os trazíamos luzidios, quatro delas eram boas poedeiras que não se passava um dia sem as ouvirmos cantar depois de porem o ovinho!

Aquele polícia, como muitos outros, conhecia os estudantes e bem assim onde morava mais as suas galinhas; agora, e deste modo, ficavam a saber da capacidade analítica e conclusiva do homem e também da sua estratégia para tirar desforra.; aquilo, por lá algum cão ladrou – continuava ele – tiveram medo que se desse conta, trataram de fugir e não puderam levá-las todas, que faziam uma dúzia bem contada; não ficarão sem lá voltar pelas outras, mas encontram-se ao engano que estes dias hei de dormir lá com esta companheira (é de imaginar que, ao dizer assim, acariciou o coldre pendente do cinturão da farda). E bem mereciam um balázio, que coisa assim não se faz! ­logo atalhou outro em apoio do camarada esbulhado, mas sempre foi aconselhando: vê lá o que fazes, não vás estragar a vidinha! Ná, qual quê – retorquiu o nosso homem, a pistola é só para os acagaçar e poder deitar a unha a algum; depois, esse há de piar os nomes dos outros e pagam-mas bem pagas, que, cá do filho do meu pai, ainda está para nascer o primeiro que se fique a rir!

Naquele fim de tarde já chegaria de copos, a língua começava a entaramelar-se encavalitando as palavras – taberneiro que se prezasse não servia tinto carregado apenas na cor – as patroas e os filhos na casa à espera para o jantarinho, cada um pagou a rodada pedida e foram andando, que se fazia tarde.

Os estudantes trocaram entre si um olhar conspirativo, a mesma ideia tinha saltado à mente de todos: aquela cena tinha que ter um final digno! De facto a partida pregada ao cívico, seguida como fora daquele queixume e da revelação de tão magna estratégia que nem o melhor general saberia conceder, em lugar público, que as tabernas eram autênticos lugares públicos, seria obra inacabada e desilustradora da “arte de bem galinhar” se o desfecho ficasse por ali; impunha-se, pois, galardoar o ato verdadeiramente heroico que o valente cívico se propunha, de dormir na capoeira, tanto mais que, com tal cometimento, enriquecia a língua pátria ao acrescentar um novo significado à expressão idiomática “deitar-se com as galinhas”.

Por aquelas noites o galinheiro estava fora de alcance. Mas engendraram maneira de não perderem o seguimento  e gizaram a estratégia para o golpe final. Três ou quatro dias depois souberam que, não tendo os gajos voltado pelas outras pitas, o sacrificado polícia também já não ia dormir na capoeira, pois andava cheiinho de piolhos, com uma coceira que só visto. Concluíra ele que os malandrins só quiseram mesmo levar as que tinham surripiado, lá tinham feito a borga à sua custa, os safados. Mas que gostava de lhes ser bom, se pudesse, ai isso gostava! De mais a mais a patroa andava chorosa com pena dos animais que tinham ido parar só Deus sabia a que bandulhos! Grande era o desgosto do homem que, em troca das pitinhas, ficara com os piolhos e passara mal as noites, pois, num galinheiro fedorento e piolhoso nem um moiro conseguiria dormir, quanto mais um cristão e, para cúmulo, polícia! E tudo em vão, sem proveito, que as pitinhas já tinham ido, e sem glória, pois gabara-se por toda a esquadra que havia de deitar a mão a um só que fosse dos gabirus...

Na primeira noite dormida sem piolhos, com o sono reconfortante pesado, que o das anteriores estava em falta, as restantes pitinhas levaram caminho. Ironia do destino, talvez...

EXPRESSÃO, dezembro 1997

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