A 4 dias da vinda de Jorge Carvalheira à ESAAG para duas conversas com os alunos do 9º ano, apresentamos mais uma crónica de Jorge Carvalheira no nosso EXPRESSÃO entre 1997 e 2000. Ou de como pode ser perigoso ir a uma marisqueira.
CRÓNICA NA COLUNA "O BICO DO CORVO"
O finamento da tia inocência deixou-me nas mãos uma herança
apetitosa, que resolvi festejar com lavagante. Corri à frutos do mar, e logo me
atendeu um moço radiante, de prazenteiro lápis em riste.
Escolhi uma mesa em frente do aquário, para não perder nem um
pormenor da função, e vi perfeitamente o que se passou. O rapaz foi metendo
sorrateiramente o braço na água, direito aos gorgomilos do bicho, enquanto a
fera assobiava para o ar, encostada a um calhau. Apenas entreabriu uma das
pinças, como quem solta a patilha da espingarda. E, quando teve ao alcance a
mão do moço, logo lhe trinchou uma falangeta.
Apanhado de surpresa, o rapaz levou uns minutos a
recompor-se, mas acabou por arregaçar as mangas e voltar à carga. E foi num ai
que se achou sem o resto do polegar.
Eu fiquei ainda mais aflito do que ele, já via o pobre do
sujeito a ficar maneta de todo. Procurei contemporizar, e sugeri-lhe que me
trouxesse uns pés de burro. Mas o estardalhaço que se levantou lá do fundo,
atrás da tina dos lamelibrânquios, não prenunciava nada de bom. E eu só percebi
a razão de tudo quando o rapaz voltou desfigurado, um fio de sangue a alastrar
entre os olhos. Tinha apanhado um belíssimo coice na testa.
Ainda lhe pedi umas cadelinhas, mas o desgraçado capitulou, à
medida que foi perdendo sangue. Sentou-se, pálido, ao meu lado, e encarregou-me
de mediar o conflito. Que fosse conferenciar com os crustáceos, e descobrisse
um modo de transpor ação tão radical.
No concílio que se seguiu, usei da melhor diplomacia, mas
tudo foi em vão. O lavagante não estava disposto a abdicar do estatuto nem dos
pergaminhos, sustentava que a tetravó fora íntima das baixelas de Luís XIV e
dos cardeais de Roma. E quase me calou, ao gritar que não se sujeitava aos
modos das turbas do bairro, que apareciam ali de calção plebeu e perna peluda
exposta, de palitinho no dente.
Ainda esbocei protestar com as leis do mercado e do mundo
moderno. Mas logo as ostras, completamente fora da ordem de trabalhos,
impuseram a questão da poluição geral das águas, que dizimava colónias
inteiras. E todos vociferavam contra o exagerado esforço de pesca no aquário, e
contra as desleais artes do camaroeiro.
Dispenso-me de relatar tudo quanto foi dito, a gritaria era
muita e a desordem ameaçou instalar-se por mais que uma vez. Mas ouvi ainda
aludir ao mercado negro de armamentos, pelos vistos já havia emissários na
líbia, enquanto não fosse obtido um contrato de fornecimento com o pentágono.
Retirei-me das negociações com um aperto na alma, afinal a
crise era mais profunda do que imaginar se podia. Procedi a uma reflexão madura
durante o resto da semana, e de pouco me serviram os contactos que mantive com
a gerência da frutos do mar. Acabei por entregar o caso ao secretário geral das
nações unidas, não me passava pela cabeça que fosse tão radical o desencontro
entre comedores e comidos. E lamentei afinal a morte da tia inocência. Quem
iria supor que o sossego do mundo dependia assim de mãos tão frágeis e
enrugadas.
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