O início da PEREGRINAÇÃO, de Fernão Mendes Pinto, é um texto que
prepara o leitor para uma narrativa cheia de peripécias O desafio aos alunos de
Literatura Portuguesa era recriarem o motivo que levou Fernão Mendes Pinto a
fugir da casa de uma dama nobre onde servia (capítulo I da Peregrinação). A
Beatriz Madeira, do 10º D, imagina a sequência da narrativa.
Naquele dia fatídico, o último dia
da minha estadia com o meu tio, fui trabalhar para a tal senhora de nobreza
alta. O dia prosseguiu como sempre, fiz as tarefas enfadonhas que me imponham,
de vez em quando avistava médicos e criadas a entrar e a sair do quarto da
senhora, mas nada me despertou o interesse (ela era tão velha como a carcaça
de um cavalo, deixado a apodrecer no campo de batalha, destinado a morrer
pelos ferimentos causados pelos cruéis homens da Coroa). Ia a meio das
obrigações da tarde, quando me convocaram. Dois escravos, de olhar pesaroso e
corpo esquelético, dirigiram-me à porta colossal que dava para o quarto da
nobre. Não era raro me encontrar naquela divisão, muitas vezes levava comida ou
satisfazia os pedidos da senhora. Ela tinha os seus dias. Nuns podia ser a mais
ingrata, maldosa e manipuladora serpente, em que cada palavra que cospe, está
coberta de veneno e tenta, propositadamente, tornar o nosso dia pior do que os
fogos eternos do inferno. Noutros era tolerável, mas a sua “compaixão” provinha
da pena, ela canonizava-se e, tocada pela nossa pobreza, dava-nos um pedaço de
pão e uma palestra sobre o quão importante era retribuir para os menos Afortunados. Ao primeiro passo que dei, dentro daquela secção bem cuidada da
casa, senti um cheiro pútrido, médicos, com as máscaras de bico grande,
afastaram-se e eu tive um mau pressentimento. Ao darem um passo ao encontro da
janela, parcialmente aberta, revelaram a imagem da senhora, deitada na cama,
com as suas vestimentas de noite, outrora brancas, agora cobertas de sangue e
manchadas com aquilo que supus que era pus, demonstrava um aspeto febril e as
ínguas inchadas. Mas, aquilo que me causou um verdadeiro arrepio foi o seu dedo
índex, apontado para mim de uma maneira acusadora. Do canto sudoeste do quarto
saiu um homem carrancudo, com um pergaminho aberto. Ele começou a decretar:
“Por ordem de El-Rei, todos aqueles que infetarem com peste grandes grupos ou
membros essenciais à corte de Portugal, tanto clero como nobreza, serão
declarados culpados de homicídio por falta de diligência e a sua sentença será
a morte, para evitar a contaminação futura.” Quando o mensageiro real acaba de
pronunciar a última palavra, a realidade abate-se sobre mim, aquela velha
jarreta estava a usar-me como bode expiatório. Na verdade, a senhora fazia
decisões questionáveis, todos os que lá trabalhavam tinham conhecimento delas,
não era raro vermos ocasionalmente moços jovens a saírem do seu quarto após
passarem lá a noite, ninguém sabia o que faziam, mas claro, a imaginação
ocupava-se desse engenho. O marido dela falecera há décadas, e nenhum homem de
reputação aceitara tomá-la como noiva, uns por não terem paciência para aturar
os seus devaneios e outros por puro nojo. A única companhia que ela podia
arranjar, com a sua idade avançada, eram aqueles a quem ela pagava. Toda A gente
sabe que recorrer a bordéis é um perigo, pois os moços e moças acarretam
doenças e é um tiro no escuro saber aqueles que são saudáveis e os que são
débeis. E parece que ela, como tantos outros, não possuía essa sorte e acabou
por contrair a peste. Eu estive perdido nos meus pensamentos durante algum
tempo, mas quando recuperei a minha postura, ouvi claramente as suas desculpas
esfarrapadas. Ela assumiu a sua farsa de clemência, culpou a sua bondade por
aceitar, a pedido de meu tio, a minha pessoa na sua casa há um ano e meio.
Afirma que desde o princípio, pela minha aparência imunda, pelas minhas roupas,
ou melhor “farrapos”, eu podia ser um portador de doenças e não demonstrar
sintomas por estar tão habituado a viver nas ruelas degradadas. Mas por sua boa
educação e moralidade me aceitou como trabalhador no seu “humilde” lar e pôs de
lado as suas suspeitas. Eu não estava admirado, uma senhora da alta nobreza não
quer admitir os seus erros e os motivos para tal infortúnio, a sua solidão e a
procura por companhia ou apenas o pecado da luxúria. E por escolha própria,
para se livrar das consequências e da vergonha dos seus atos, decide culpar o
inocente (a pessoa mais credível para completar a sua missa negra), ela não só
se condenou a si própria, também me arrastou. De repente, dois guardas saltam
por trás do mensageiro e, pela sua postura, consigo ver que me querem agarrar e
levar-me para cumprir o destino traçado por aquela senhora promíscua. Antes de
desatar a correr, viro-me para a senhora e dou-lhe um olhar, daqueles olhares
que congelam a alma e falam mais alto do que as cantigas nos festins, daqueles
olhares que ultrapassam qualquer barreira que uma pessoa construa (orgulho,
ignorância, desinteresse,…), daqueles olhares
em que a mensagem é direta e o meu dizia “Muitos homens, como as
crianças, querem uma coisa, mas não as suas consequências”. Eu começo a correr,
com toda a velocidade que me era possível, atiro tudo e todos para fora do meu
caminho na esperança de poder abrandar os meus perseguidores. A minha cabeça
estava a mil, eu revirava a ideia de não poder mais estar naquele lugar, não
suportava aquela gente hipócrita, mas, no entanto, não tinha feito nada de mal
e a vida decidiu punir-me, obrigando-me a abandonar as poucas coisas que
conhecia e a iniciar uma aventura nova.
Agora, se me perguntarem o que foi mais
difícil, eu vos direi que não foi o cansaço, daquela corrida feita pelas ruas
da grande Lisboa na luta do meu direito de viver, não foi aquele momento em que
percebi que fui traído, não foi a realização de que a minha vida pacata tinha
terminado enquanto arrumava os meus poucos pertences para ir embora daquele
pesadelo e embarcar num barco no qual o destino não importava; acho que o peso
nas minhas costas, que implorava que eu sucumbisse sobre o chão de mármore
preto atravessado por linhas cor de madrepérola, foi o pesar de deixar as
pessoas que tinham feito a diferença, deixar os poucos amigos que fiz e a
família que me restava para trás durante apenas Deus sabe quanto tempo, foi a
humilhação de fugir, de parecer um covarde aos olhos das pessoas e nenhuma
delas me ter defendido perante aquelas blasfémias de acusações (mesmo que não
fizesse diferença nenhuma, eu saberia que alguém lutou por mim, mas também
entendo que poderiam ser acusados e destinados á mesma sentença). Antes de
partir, tentei encontrar o meu tio, mas sem sucesso, nunca tive a oportunidade
de lhe explicar o ocorrido e é com muita pena que digo que ele apenas pode ouvir
calúnias de terceiros; como eu disse, a imaginação encarrega-se desse engenho.
Mas eu gostava de lhe agradecer, pois graças a ele, por me levar a Lisboa, ao
ser atraiçoado, pude começar uma jornada só minha.
Beatriz Madeira (10º D)
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