sexta-feira, 29 de outubro de 2021

FÁBULAS EM OUTUBRO (6) As fábulas estranhas de Jean Anouilh



Jean Anouilh (1910-1987) foi um escritor francês que se distinguiu sobretudo no teatro mas que escreveu também um livro de fábulas muito estranho em que as personagens encarnam muitas vezes aquilo que não esperamos deste ou daquele animal, desta ou daquela pessoa. Às vezes o autor pega nas fábulas de La Fontaine e “dá-lhes a volta”. Eis uma delas:

 

A cabra maluca

 

A cabra, uma manhã, teve vontade de viver -

é o termo – “perigosamente”.

Ela tinha lido em demasia a vida nos livros…

Era todavia uma manhã de felicidade,

Erva tenra ao sol e a corda mal presa.

Mas nada vos segura quando este desejo chega.

Enganando a pequena pastora

Que tricotava para o seu enxoval,

Deixando as suas irmãs e o seu cabritinho,

Partiu pela colina acima,

Sozinha, à procura do lobo.

 

O dono, estamos a imaginar,

Não a tinha enchido de pancada,

O estábulo estava limpo e a mão sem rudeza

Vinha ordenhá-la a cada noite…

Mas quando este desejo de partir aparece

Por mais que possamos ouvir e saber

Que a felicidade está ali, no quentinho da palha,

Cabra ou mulher, é preciso partir.

Andou a vaguear a noite inteira.

O lobo seguia-a de perto,

Espantado daquele atrevimento,

Perguntando a si próprio se estavam a gozar com ele.

Era um lobo muito velho que já tinha visto tanta coisa

Que era raro apanhá-lo desprevenido.

Esta cabrinha solta, sozinha, entre os penedos,

No seu terreno de caça onde ninguém arriscava,

Não lhe dava grandes vontades.

Ele pensava que, se a apanhasse,

acabaria na mira

do velho marquês,

que tinha muitos truques no saco.

O nosso lobo pensou: “Não sou assim tão doido,

Já captei a ideia, senhor marquês.”

E esta cabra, em pleno descampado

Era uma artimanha muito grosseira.

“Deixa-me cá segurar as costas.

Então bom dia! Meter-lhe o dente, não!”

Deu meia-volta prudente

E voltou para o covil.

 

Tendo vagueado um dia e uma noite

Inteira,

Sem encontrar o inimigo,

A cabra, cheia de coragem inútil,

Resignada à vida tranquila,

Sentiu que era preciso fazer ao menos um gesto.

Ah! como as cabras são mulheres…

E assim, tendo encontrado pelo caminho de volta

O dono que a procurava de braços abertos,

Não resistiu a dar-lhe em plena pança

Uma valente cornada…

(tradução de J. I. com ligeiras adaptações)

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