quarta-feira, 3 de junho de 2020

PEREGRINANDO (3) A versão da Beatriz Madeira da fuga do herói


O início da PEREGRINAÇÃO, de Fernão Mendes Pinto, é um texto que prepara o leitor para uma narrativa cheia de peripécias O desafio aos alunos de Literatura Portuguesa era recriarem o motivo que levou Fernão Mendes Pinto a fugir da casa de uma dama nobre onde servia (capítulo I da Peregrinação). A Beatriz Madeira, do 10º D, imagina a sequência da narrativa.
Naquele dia fatídico, o último dia da minha estadia com o meu tio, fui trabalhar para a tal senhora de nobreza alta. O dia prosseguiu como sempre, fiz as tarefas enfadonhas que me imponham, de vez em quando avistava médicos e criadas a entrar e a sair do quarto da senhora, mas nada me despertou o interesse (ela era tão velha como a carcaça de um cavalo, deixado a apodrecer no campo de batalha, destinado a morrer pelos ferimentos causados pelos cruéis homens da Coroa). Ia a meio das obrigações da tarde, quando me convocaram. Dois escravos, de olhar pesaroso e corpo esquelético, dirigiram-me à porta colossal que dava para o quarto da nobre. Não era raro me encontrar naquela divisão, muitas vezes levava comida ou satisfazia os pedidos da senhora. Ela tinha os seus dias. Nuns podia ser a mais ingrata, maldosa e manipuladora serpente, em que cada palavra que cospe, está coberta de veneno e tenta, propositadamente, tornar o nosso dia pior do que os fogos eternos do inferno. Noutros era tolerável, mas a sua “compaixão” provinha da pena, ela canonizava-se e, tocada pela nossa pobreza, dava-nos um pedaço de pão e uma palestra sobre o quão importante era retribuir para os menos Afortunados. Ao primeiro passo que dei, dentro daquela secção bem cuidada da casa, senti um cheiro pútrido, médicos, com as máscaras de bico grande, afastaram-se e eu tive um mau pressentimento. Ao darem um passo ao encontro da janela, parcialmente aberta, revelaram a imagem da senhora, deitada na cama, com as suas vestimentas de noite, outrora brancas, agora cobertas de sangue e manchadas com aquilo que supus que era pus, demonstrava um aspeto febril e as ínguas inchadas. Mas, aquilo que me causou um verdadeiro arrepio foi o seu dedo índex, apontado para mim de uma maneira acusadora. Do canto sudoeste do quarto saiu um homem carrancudo, com um pergaminho aberto. Ele começou a decretar: “Por ordem de El-Rei, todos aqueles que infetarem com peste grandes grupos ou membros essenciais à corte de Portugal, tanto clero como nobreza, serão declarados culpados de homicídio por falta de diligência e a sua sentença será a morte, para evitar a contaminação futura.” Quando o mensageiro real acaba de pronunciar a última palavra, a realidade abate-se sobre mim, aquela velha jarreta estava a usar-me como bode expiatório. Na verdade, a senhora fazia decisões questionáveis, todos os que lá trabalhavam tinham conhecimento delas, não era raro vermos ocasionalmente moços jovens a saírem do seu quarto após passarem lá a noite, ninguém sabia o que faziam, mas claro, a imaginação ocupava-se desse engenho. O marido dela falecera há décadas, e nenhum homem de reputação aceitara tomá-la como noiva, uns por não terem paciência para aturar os seus devaneios e outros por puro nojo. A única companhia que ela podia arranjar, com a sua idade avançada, eram aqueles a quem ela pagava. Toda A gente sabe que recorrer a bordéis é um perigo, pois os moços e moças acarretam doenças e é um tiro no escuro saber aqueles que são saudáveis e os que são débeis. E parece que ela, como tantos outros, não possuía essa sorte e acabou por contrair a peste. Eu estive perdido nos meus pensamentos durante algum tempo, mas quando recuperei a minha postura, ouvi claramente as suas desculpas esfarrapadas. Ela assumiu a sua farsa de clemência, culpou a sua bondade por aceitar, a pedido de meu tio, a minha pessoa na sua casa há um ano e meio. Afirma que desde o princípio, pela minha aparência imunda, pelas minhas roupas, ou melhor “farrapos”, eu podia ser um portador de doenças e não demonstrar sintomas por estar tão habituado a viver nas ruelas degradadas. Mas por sua boa educação e moralidade me aceitou como trabalhador no seu “humilde” lar e pôs de lado as suas suspeitas. Eu não estava admirado, uma senhora da alta nobreza não quer admitir os seus erros e os motivos para tal infortúnio, a sua solidão e a procura por companhia ou apenas o pecado da luxúria. E por escolha própria, para se livrar das consequências e da vergonha dos seus atos, decide culpar o inocente (a pessoa mais credível para completar a sua missa negra), ela não só se condenou a si própria, também me arrastou. De repente, dois guardas saltam por trás do mensageiro e, pela sua postura, consigo ver que me querem agarrar e levar-me para cumprir o destino traçado por aquela senhora promíscua. Antes de desatar a correr, viro-me para a senhora e dou-lhe um olhar, daqueles olhares que congelam a alma e falam mais alto do que as cantigas nos festins, daqueles olhares que ultrapassam qualquer barreira que uma pessoa construa (orgulho, ignorância, desinteresse,…), daqueles olhares  em que a mensagem é direta e o meu dizia “Muitos homens, como as crianças, querem uma coisa, mas não as suas consequências”. Eu começo a correr, com toda a velocidade que me era possível, atiro tudo e todos para fora do meu caminho na esperança de poder abrandar os meus perseguidores. A minha cabeça estava a mil, eu revirava a ideia de não poder mais estar naquele lugar, não suportava aquela gente hipócrita, mas, no entanto, não tinha feito nada de mal e a vida decidiu punir-me, obrigando-me a abandonar as poucas coisas que conhecia e a iniciar uma aventura nova.
 Agora, se me perguntarem o que foi mais difícil, eu vos direi que não foi o cansaço, daquela corrida feita pelas ruas da grande Lisboa na luta do meu direito de viver, não foi aquele momento em que percebi que fui traído, não foi a realização de que a minha vida pacata tinha terminado enquanto arrumava os meus poucos pertences para ir embora daquele pesadelo e embarcar num barco no qual o destino não importava; acho que o peso nas minhas costas, que implorava que eu sucumbisse sobre o chão de mármore preto atravessado por linhas cor de madrepérola, foi o pesar de deixar as pessoas que tinham feito a diferença, deixar os poucos amigos que fiz e a família que me restava para trás durante apenas Deus sabe quanto tempo, foi a humilhação de fugir, de parecer um covarde aos olhos das pessoas e nenhuma delas me ter defendido perante aquelas blasfémias de acusações (mesmo que não fizesse diferença nenhuma, eu saberia que alguém lutou por mim, mas também entendo que poderiam ser acusados e destinados á mesma sentença). Antes de partir, tentei encontrar o meu tio, mas sem sucesso, nunca tive a oportunidade de lhe explicar o ocorrido e é com muita pena que digo que ele apenas pode ouvir calúnias de terceiros; como eu disse, a imaginação encarrega-se desse engenho. Mas eu gostava de lhe agradecer, pois graças a ele, por me levar a Lisboa, ao ser atraiçoado, pude começar uma jornada só minha.  
Beatriz Madeira (10º D)

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